Quem pode, quem não pode

Chega um pouquinho mais pra lá!
by Patrick Chappatte (1966-), desenhista suíço

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 29 março 2024

Num discurso pronunciado poucos dias atrás, Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia, pisou com força no calo de muita gente. Atacou forte o primeiro-ministro de Israel. Com todas as letras, afirmou que, com os crimes que vem cometendo em Gaza, Benjamin Netanyahu “inscreve seu nome ao lado de Hitler, Mussolini e Stalin, como um nazista dos dias atuais”.

E não parou por aí. Garantiu que “ninguém jamais obrigará a Turquia a chamar o Hamas de organização terrorista”. Acrescentou ainda que a Turquia “conversa abertamente com os líderes do Hamas e os apoia com determinação”.

São poucos os líderes a poder pronunciar tais palavras sem que o mundo venha abaixo. Erdogan é um deles, e sabe que pode fazê-lo sem ser cobrado. O dirigente turco entendeu que a liberdade de palavra de um líder está ligada à importância de seu país no tabuleiro da política mundial. Há nações importantes pelo poder econômico, outras se impõem pelo arsenal atômico, há ainda países que, por sua posição geográfica, são estratégicos.

Antes de falar grosso, Erdogan manobrou paulatinamente para aumentar o peso de seu país. O território turco se assenta nas duas margens do Bósforo, o estreito por onde é obrigado a passar todo navio com destino ao Mar Negro.

Isso significa que toda a frota russa baseada naquelas águas tem de pedir licença à Turquia para transitar por ali, até poder largar âncoras em seu porto de armamento situado na margem russa do Mar Negro. A política externa de Erdogan torna seu país polivalente. Membro da Otan, a Turquia é próxima da Ucrânia, amiga da Rússia e inimiga de Israel. Numa hipotética futura mesa de negociação da paz na Ucrânia, a Turquia será um participante por assim dizer obrigatório.

Essa esperta ambiguidade da política turca, aliada à importância geográfica do país, faz que se releve boa parte dos exageros retóricos do presidente – que são basicamente destinados a seu público interno. Fecham-se os ouvidos para a comparação extravagante entre Netanyahu e Hitler, e fecha-se o olho para o apoio veemente e fraterno ao Hamas, grupo considerado por muitos como terrorista.

Nosso Lula nacional, depois de levar puxões de orelha por falas inoportunas e inapropriadas, parece ter mudado a espingarda de ombro. (Essa é a situação no momento em que escrevo; amanhã, ninguém sabe.) A importância estratégica do Brasil ainda não permite a nosso presidente sair por aí dando murros na mesa. Lula acaba quebrando os dentes a cada vez que se aventura por mares que não costumamos navegar.

Tudo indica que sua nova meta é assumir a liderança do “Sul Global”. O alvo está distante e o caminho será pra lá de árduo. Há sinais de que nossa sociedade está mudando. Um fato novo revelado pelo último Datafolha mostra que 10% dos entrevistados apontam a política externa de Lula como algo negativo. Isso é novidade. Política exterior nunca foi tema importante para o grande público no Brasil, sendo reservado, via de regra, para iniciados. Percebe-se que já não é assim.

Mas o que vem a ser esse tal de Sul Global? O nome é portentoso, deixando a impressão de que congrega todos os países ao sul do Equador, irmanados num interesse comum. Não é nada disso. Não passa de uma etiqueta. É um elenco de países díspares que se imagina não terem simpatia pelos Estados Unidos, país cuja hegemonia talvez os incomode. Assim, excluídos os EUA, a Europa e mais algumas antigas colônias britânicas, a etiqueta reúne em tese todos os países restantes.

O nome da etiqueta foi mal escolhido. China, Índia e Rússia – apesar de se situarem inteiramente no Hemisfério Norte, com a Rússia roçando até o Polo Norte – fariam parte do “Sul Global”. Vê-se que é uma congregação de interesses contrastados, às vezes divergentes e até antagônicos. São países que pouco têm a ver entre si. É esse Sul Global que Luiz Inácio tem intenção de liderar? Um Lula a liderar Putin, Xi Jinping e Modi?

O Brasil é um país lindo e cheio de promessas mas nossas potencialidades têm de ser desenvolvidas. Em vez de tentar liderar etiquetas ao redor do mundo, Lula deveria começar combatendo os males nacionais, pelo menos os mais evidentes e urgentes, como a dengue, a miséria, o massacre sistemático dos povos indígenas. Seria o melhor caminho para tentar recobrar a velha aura que murchou.

Um dia, o Brasil certamente será importante. Mas a estrada ainda é longa.

Daqui ninguém me tira

José Horta Manzano

A Rússia é o maior país do planeta. Sua superfície equivale a dois Brasis. Com tanto espaço para população relativamente pequena ― de uns 140 milhões de habitantes ― convém perguntar por que razão se batem pela Crimeia.

Por que fazem tanta questão de conservar um território exíguo, do tamanho do pequenino Estado das Alagoas? Seriam os russos gananciosos a ponto de tomarem à força um pedaço de terra estrangeira, assim, sem mais nem menos, pelo prazer de aumentar seu próprio território? Que diferença faz acrescentar 27 mil km2 a um país que já dispõe de 17 milhões de km2? A Crimeia, afinal, não tem petróleo, nem ouro, nem urânio.

O buraco é mais profundo. Por grande que seja, a Rússia tem um problema antigo de difícil solução: seu imenso território é encravado, a porta de saída é estreita. Com exceção de alguns trechos, suas costas estão expostas a mares frios, daqueles que congelam no inverno e dificultam ou impedem a navegação.

Faz séculos que o governo russo tenta por todas as maneiras estender suas costas a águas mais clementes. Cada quilômetro de beira-mar livre de gelo agregada ao território representa uma vitória.

O avanço em direção ao sul é o objetivo maior do Estado russo. Em todas as guerras que o país travou, o butim mais significativo foi sempre a conquista de mais uma franja de costa. Foi o que aconteceu ao final da Guerra Russo-Finlandesa e da Segunda Guerra Mundial. Cada uma delas aumentou a exposição do país a mares temperados.

Rússia e península da Crimeia

Rússia e península da Crimeia

Pois a Crimeia entra nessa linha. Banhada pelo Mar Negro, situada a uma latitude de 45 graus, tem suas costas livres de gelo o ano inteiro. Do ponto de vista estratégico, é uma das joias da coroa. Para Moscou, aquela peninsulazinha vale ouro.

De qualquer maneira, era território russo até 1954, quando foi atribuída à Ucrânia por decisão burocrática tomada em Moscou. Na época, como a Rússia e a Ucrânia faziam parte da União Soviética, essa redefinição de fronteiras internas não trazia consequência. Hoje não é mais assim. Mas frise-se que a população daquele território ainda é majoritariamente de origem e de língua russa.

Os EUA e a UE podem reclamar, ameaçar, espernear ― não vai adiantar. Exagerando nas tintas, eu diria que é mais fácil os russos entregarem um pedaço da Sibéria que a Crimeia. Os estrategistas do mundo inteiro sabem disso. O que se vê estes dias não passa de jogo de cena. A Rússia lá está e lá continuará «duela a quién duela». (*)

Interligne 23

(*) Nota em atenção aos mais jovens
Em 1992, quando de uma entrevista à televisão argentina, Collor de Mello ― então presidente do Brasil ― soltou uma joia de puro portuñol. Querendo afirmar que todos os corruptos seriam desmascarados e punidos, traduziu ao pé da letra nossa expressão “doa a quem doer”. Ficou incompreensível para ouvidos castelhanos. Foi um desastre.