Sotaques que se perderam

Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil
by Jean-Baptiste Debret (1768-1848), pintor francês

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 27 novembro 2021

Por que é que a fala brasileira é tão diferente da portuguesa? Razões, há várias. O isolamento em que viveram as colônias lusas na América é fator essencial, responsável pela permanência, em nosso falar, de formas arcaicas já caídas em desuso em Portugal. Por seu lado, mudanças fonéticas ocorridas lá nem sempre repercutiram aqui.

Também é importante lembrar a influência das línguas indígenas, transmitidas aos primeiros brasileirinhos como consequência da formação de famílias mistas, com pai português e mãe índia. É permitido imaginar que, antes de o Marquês de Pombal proibir o uso do tupi, o bilinguismo fosse frequente nas capitanias do sul.

Os imigrantes europeus da virada do século 19 para o 20 trouxeram na bagagem palavras e expressões que acabaram incorporadas à língua. Mas não há que esquecer que, ao chegarem, essas populações encontraram um falar bastante cristalizado, já próximo do que conhecemos hoje.

A influência mais profunda sofrida pelo falar brasileiro, não há que se diga, veio dos negros africanos trazidos ao Brasil como escravos. Descobrir quantos eram, em diferentes momentos de nossa história, não é fácil. O primeiro censo oficial só teve lugar em 1872. Antes dele, não havia estudos demográficos sistemáticos. O que há são trabalhos recentes, obra de pesquisadores de paciência beneditina, que garimparam inventários dos séculos passados. O escravo, equiparado a um objeto, não contava como gente. Portanto, para apurar sua existência, convém compilar listas de bens dos defuntos, onde eles aparecem ao lado de louça e peças de mobiliário.

Esses trabalhos dão uma boa ideia da população negra no Brasil dos séculos 17 e 18. Estima-se que, em meados do século 18 (1750), na época em que nosso falar começava a se fixar, a população da capitania das Minas Gerais era composta por 60% de escravos africanos, o que dá uma ideia do enorme contingente populacional vindo de fora e que falava, como segunda língua, um português tosco.

Esses “imigrantes” forçados eram cuidadosamente triados pelos senhores para evitar a formação de grandes grupos que falassem o mesmo dialeto. Prevenir motins e rebeliões era preocupação constante. Originários da costa ocidental da África, os cativos falavam línguas e dialetos da grande família banta. Apesar disso, a intercompreensão entre os diferentes falares era geralmente impossível.

Foi assim que o português acabou se impondo como lingua franca entre os próprios africanos. O português foi aprendido de ouvido, sem escola, sem gramática, sem coach de correção de pronúncia. O sotaque da massa de escravos, típico do estrangeiro que fala uma língua aprendida, há de ter influenciado o falar da minoria branca. De um lado, os africanos sorveram língua e vocabulário dos senhores; de outro, devolveram um português mastigado, triturado, amolecido, rearranjado. A maneira como falamos hoje descende dessa permuta que atingiu seu pico no século 18.

Seria valioso ouvir os escravos se exprimirem na nova língua. Será que já dava pra identificar, naquele linguajar incipiente, traços e marcas que ficariam de herança para nosso falar atual? Infelizmente, os tempos não permitiam registros sonoros. Ainda assim, temos atualmente um modo de recuperar esse passado de sotaques.

Um pequeno contingente de africanos vive hoje no Brasil – imigrantes e, principalmente, refugiados. Por coincidência, são originários das mesmas costas de onde provinham os escravos que povoaram nossa terra. Por que não aproveitar e fazer um registro sonoro da fala desses africanos legítimos, que estão em pleno aprendizado do português? A língua materna de todos será uma variedade da família banta, como ocorria com os escravos de outrora.

Os negros que vivem na França, que também provêm das costas ocidentais da África, têm um sotaque característico, facilmente identificável ao falarem francês. Mas não formam contingente numeroso ao ponto de influenciar o falar dos franceses. No Brasil de antigamente, chegaram a ser a maioria dos habitantes. É mais que provável que nossa fala guarde pontos de contacto com a deles. A presença, em nosso território, desses recém-chegados constitui excelente ocasião pra conferir. Os que entendem do riscado não deveriam desperdiçar a oportunidade.

Filho illegitimo

José Horta Manzano

Você sabia?

O elevador é boa imagem para exprimir a ascensão social. A metáfora é muito usada na França, onde, volta e meia, surge a figura do elevador social. Não me refiro àquele que, em certos edifícios, é reservado para uso de não funcionários. Falo de um imaginário veículo que permite subir na vida.

Certos países são conhecidos por facilitar a ascensão. Nos EUA, por exemplo, é comum topar com indivíduos que saíram do nada e chegaram a posição de destaque ou à riqueza. Por um lado, os que seguiram esse caminho se orgulham de havê-lo feito; por outro, são admirados e aplaudidos pelos concidadãos.

Sem ser propriamente paralisada, a sociedade brasileira não está entre as que mais favorecem a mobilidade social. Via de regra, ascensão, quando há, é lenta e complicada. Quando algum cidadão galga os degraus de quatro em quatro ‒ caso excepcional ‒ periga ser olhado de banda. Todos vão desconfiar que ele andou tomando atalho proibido.

A herança ibérica, o catolicismo forjado na Inquisição, o escravagismo, o prolongado estatuto colonial são fatores que moldaram o Brasil atual. Não se sai facilmente de trezentos anos de regime escravista. O Treze de Maio liberou escravos que, em razão da Lei do Ventre Livre, estariam de qualquer maneira livres a médio prazo. Liberou escravos mas não liberou mentes. A estratificação de nossa sociedade continua firme e forte como nos tempos de antigamente.

Certidão de nascimento de 1914: menção da legitimidade da criança
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Um nadinha basta pra tascar um carimbo na testa de cada indivíduo. Um sotaque mais carregado, uma tez mais cerrada, um nome que escape ao molde, um vestir menos apurado ‒ qualquer sinal de desvio do padrão será punido com a exclusão. Estão aí as políticas de quota como prova definitiva de que nosso elevador social, mais que enguiçado, anda travado.

E olhe que hoje em dia já estamos bem melhor do que algumas décadas atrás. A sociedade já foi mais amarrada. Os mais jovens talvez nem imaginem que, até a metade do século passado, certidão de nascimento mencionava se o cidadão era filho legítimo ou não. Legítimo era o que nascia de casal casado nos conformes. Se nascesse fora do casamento, ainda que o pai a reconhecesse, a criança seria registrada como ‘illegitima’. E carregava essa pecha pelo resto da vida, como marca de um pecado original, como defeito de fabricação. Pode?

Esse arcaísmo já caiu, assim como a criminalização do adultério. Mulheres já podem trabalhar fora de casa e sair à rua sozinhas. Com a legalização do divórcio, mulher separada já não é olhada com desdém. Mas o caminho ainda é longo. O elevador ainda vai continuar enguiçado por um tempo. Nossa herança é pesada.