A pandemia e as próximas décadas

José Horta Manzano

Que seja ou não do agrado de Mr. Trump, a Organização Mundial da Saúde, agência da ONU criada em 1948, é referência planetária em matéria de saúde, o bem mais precioso de que o homem dispõe. No mundo moderno, onde longas viagens são corriqueiras, micróbios viajam também. Os bichinhos não respeitam fronteiras: entram de contrabando sem pedir licença.

Todo dirigente dotado de um mínimo de bom senso entende que é importante apoiar uma organização que cuida da saúde do planeta. Quanto menos doentes houver, menor será o risco de vírus, bactérias e outros micróbios circularem. Quanto mais sadia forem as populações, melhores serão, especialmente para os países industrializados, as perspectivas de vender seu peixe em escala planetária.

Não serão os arroubos arrogantes e ignorantes do inquilino atual da Casa Branca que vão mudar alguma coisa. A OMS está no comando de programas de vacinação, de luta contra a pobreza, de campanhas de erradicação de doenças endêmicas. Os países mais pobres são os maiores beneficiários de suas ações.

Seu orçamento é financiado pelos quase 200 países-membros. As contribuições são fixadas levando em conta o PIB e população de cada um. Além disso, está em aumento o apoio financeiro proveniente de entidades privadas. O maior contribuidor são ainda os Estados Unidos, mas o segundo – é interessante notar – não é um país, mas uma entidade privada: a Fundação Bill & Melinda Gates, que participa com mais de meio bilhão de dólares por ano.

Numa época em que nosso país ainda estava longe de ser representado no exterior por indivíduos do estilo Weintraub, a organização foi dirigida por um ilustre conterrâneo. O médico carioca Marcolino Candau presidiu a OMS durante 20 anos (1953-1973), eleito e reeleito por quatro mandatos consecutivos – uma longevidade inigualada até hoje.

Sede da OMS, Genebra (Suíça)

Atualmente, 7.000 funcionários, baseados em 149 países, tocam uma centena de programas. Cuidados com a saúde de recém-nascidos, erradicação da poliomielite, prevenção da cegueira, pesquisa de doenças tropicais, resistência antimicrobiana, estudos sobre ebola – são alguns desses programas.

Estes dias, a OMS anunciou que a crise sanitária decorrente do coronavírus vai produzir efeitos «durante as próximas décadas». O quadro não é nada encorajador, antes, é bastante assustador. Mas não adianta tentar se esquivar: a realidade é como é, nem sempre como gostaríamos que fosse.

A contragosto, dirigentes ao redor do mundo começam a se dar conta de que teremos de conviver com esse fato novo por muitos anos. Uma doença nova, contagiosa, mortal e (por enquanto) sem vacina e sem cura anda solta e pode pegar qualquer um. Doutor Bolsonaro não é o único dirigente a torcer o nariz para essa situação desagradável, que atrapalha os planos de qualquer poderoso. É hora de parar, pensar e planejar. Hora de espremer as meninges e tentar organizar o amanhã.

Portanto, em vez de agitar embalagem de remédio duvidoso para emas, nosso presidente devia deixar de se comportar como avestruz – por sinal, parente das moradoras do gramado do palácio. Não adianta enfiar a cabeça na areia pra fingir que não viu as nuvens escuras. Melhor deixar de molho a cura miraculosa, arregaçar as mangas e abrir passagem para cientistas, pensadores e técnicos encarregados de esboçar o Brasil dos anos pós-covid. Não o fazendo, o doutor pode até escapar da cadeia, mas será irremediavelmente degredado para o limbo dos governantes amaldiçoados. Para todo o sempre.

Publicado também no site Chumbo Gordo.

Os pés pelas mãos

José Horta Manzano

Petroleo 2Os pés pelas mãos, o continente pelo conteúdo, bolas trocadas, linha cruzada ‒ tanto faz. O título deste artigo chama a atenção do distinto leitor para uma certa miopia com que repórteres e escrivinhadores estão observando a Operação Lava a Jato, ação de limpeza pública nunca dantes vista neste país.

A dita operação, que anda parecendo cartola de mágico de onde sempre sai mais um coelho, privilegiou a investigação de rapinagem e desmandos cometidos contra a Petrobrás. Foi e continua sendo eficaz. Dezenas de indivíduos já foram desmascarados, julgados e apenados. Grande parte deles estava ligada a roubos que prejudicavam e emperravam a petroleira nacional.

Tão persistente e profunda foi a gatunagem que, poucos meses atrás, ninguém dava um tostão furado pela empresa assaltada. A importância das ações da companhia baixou ao ponto de não valerem dois réis de mel coado.

A ação vigorosa e os desdobramentos da Lava a Jato estão na raiz do saneamento da Petrobrás. As falcatruas perpetradas durante mais de dez anos de desmando haviam feito despencar o valor da empresa. Se hoje suas ações valem mais é justamente por causa da operação jurídico-policial e não apesar dela.

Chamada do Estadão, 24 out° 2016.

Chamada do Estadão, 24 out° 2016.

Portanto, a chamada do Estadão diz o contrário do que deveria dizer. A Petrobrás não começa a «reverter» efeitos da Lava a Jato. Muito pelo contrário. A Petrobrás começa a se revigorar, a reflorir, a renascer como resultado da Lava a Jato. Do jeito que está escrito, fica a impressão de que a Operação Lava a Jato é culpada pela débâcle da Petrobrás, quando o que aconteceu foi justamente o contrário. A melhora que aponta no horizonte é consequência da operação de limpeza.

O título bizarro terá sido um escorregão, uma distração, um desleixo. Sinceramente, espero que não passe disso. Caso quem deu à matéria esse título esteja convencido que a Lava a Jato «atrapalhou» o bom andamento dos negócios da maior empresa brasileira, estamos mal. Essa toada combinava com os tempos da doutora. Nunca imaginei que algum jornalista bem-intencionado ainda pudesse cair na esparrela depois de tudo o que aconteceu.