O caso Nardoni

José Horta Manzano

A liberdade de um termina onde começa a do outro, costuma-se dizer.

Para medir superfícies ― especialmente quando delimitam propriedades ― o gênio humano criou dispositivos e aparelhos de impressionante precisão. As fronteiras que dividem países evoluídos, por exemplo, são repertoriadas, catalogadas e cadastradas centímetro por centímetro. Não há erro possível. Até aqui, mando eu; a partir deste exato ponto, o dono é você.Geômetra 2

Quantidades, pesos, volumes, forças, fluxos, empuxos e outros fenômenos físicos podem ser medidos com igual justeza. Mede-se até a intensidade de tremores de terra que rebentam placas tectônicas quilômetros abaixo da superfície do globo, em lugares onde nunca ninguém pôs os pés. Nem jamais os porá.

Um evento, uma força, um objeto se prestam a ser mensurados. O resultado de medições feitas por diferentes pessoas, salvo erro ou omissão, há de ser o mesmo. São dados objetivos.

Quando tratamos de medir liberdades, a coisa muda de figura. Saímos do objetivo para adentrar o subjetivo. São outros quinhentos.

Como medir sentimentos? Como ter certeza de que o seu amor por mim é maior do que o meu por você? Como afirmar que minha dor é maior que a sua? É aí que a porca torce o rabo.

Para sábado 2 de março, estava marcada a estreia de uma peça de teatro. Peças estreiam a todo momento sem causar rebuliço. No entanto, essa obra trata de assunto mais que especial. Está baseada no caso daquela garotinha atirada pela janela de um prédio paulistano em 2008.

A mãe da garota requereu ― e conseguiu ― que a exibição da peça fosse embargada. A decisão da Justiça foi proferida na undécima hora. Este caso mostra os limites vacilantes, precários, oscilantes entre a liberdade de um e a do outro.

Por um lado, a liberdade de expressão é constitucionalmente garantida nas democracias em geral e no Brasil em particular. Desde que não calunie o próximo nem atinja sua honra, a cada um é autorizado exprimir sua opinião. Visto sob esse ângulo, os responsáveis pela peça teatral estão apenas exercendo um direito que lhes é garantido.

Por outro lado, a mãe da garota ainda guarda marcas profundas do que aconteceu 5 anos atrás. É compreensível. É-lhe insuportável a ideia de que a triste história de que foi vítima seja de novo dada em espetáculo a milhares de assistentes. Parece-lhe um escândalo. Visto sob esse ângulo, a intenção da requerente foi evitar uma nova intromissão no que considera seu drama pessoal.

Tanto quanto a liberdade de expressão, o direito à privacidade é garantido a todos os cidadãos. A quem dar razão, então? Desatar esse nó górdio é bem mais complicado do que parece. É um caso típico em que dois direitos se imbricam, se superpõem. Qual dos dois sobressai?

O tempo é remédio para tudo. Na minha opinião, é cedo demais para voltar a expor em praça pública um evento que comoveu a nação. Há que deixar passar mais alguns anos. Se o Diário de Anne Frank pôde ser publicado já em 1947, apenas dois anos após o fim da Segunda Guerra, foi porque tanto a autora quanto os personagens principais não faziam mais parte deste mundo. O livro era já um relato histórico.

Todos os personagens envolvidos no caso da menina defenestrada ― mãe, pai, madrasta, advogados, avós, irmãos, juízes, jurados ― ainda vivem. Os condenados ainda cumprem pena de prisão. As emoções estão longe de se apaziguar.Geômetra 1

Todos têm razão, tanto os responsáveis pela peça, quanto a mãe da criança. Mas é cedo. Uma geração tem de passar. Baixada a poeira, o dia virá em que o caso vai poder ser contado em prosa, verso e imagem.

Se eu tivesse de julgar, daria razão aos que determinaram o embargo da peça. No meu entender, a dor da mãe sobrepuja o interesse monetário dos organizadores do espetáculo. Sobrepuja também a curiosidade de espectadores em busca de detalhes escabrosos. Hoje em dia, alguns cliques no computador permitem reler jornais da época, rever reportagens televisivas e reviver aqueles momentos de estupor e de comoção.

Um dia, a exibição da peça poderá ser autorizada, sim, senhor. Mas não agora.

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Nota etimológica:
Na Itália do Norte, sobrenomes derivados de prenomes germânicos são comuns.

Assim, o germânico Leonhard transformou-se no italiano Leonardo e gerou uma coleção de sobrenomes: Leonardi, Leonardelli, Leonardini, Lunardi, Lunardelli e muitos outros.

Bernhard evoluiu para Bernardo, que deu origem a outra família de sobrenomes: Bernardi, Bernardini, Bernardoni, Bernardelli, Bernardinelli e outros mais.

A probabilidade é grande de que Nardoni seja membro de uma das  famílias mencionadas. Será um Leonardoni ou um Bernardoni apocopado, sem as primeiras letras.