O discurso

Cúpula de Paris – 23 junho 2023
Foto de família

José Horta Manzano


“Depois de tudo o que ouvi ontem, mudei o discurso que tinha preparado. Não vou ler.”


Foram as palavras iniciais do pronunciamento que Lula fez hoje na cerimônia de encerramento do Novo Pacto de Financiamento Global, cúpula realizada em Paris e ciceroneada pelo presidente Emmanuel Macron. Ninguém jamais saberá o que havia no discurso que nosso presidente descartou.

Assim que Lula informou que falaria de improviso, seu entourage deve ter começado a empalidecer e suar frio. Até este escriba se mexeu na cadeira: “Ai, o que é que vem por aí?”. Todo o mundo sabe que Luiz Inácio, quando cata um microfone, é capaz do melhor, mas também do pior.

Não houve nenhuma catástrofe. A invasão da Ucrânia não estando na pauta, o risco de novo escorregão feio amainou. Mas nosso presidente nunca perde ocasião de se distinguir, seja pelas declarações sensatas, seja pelas inquietantes.

Lula falou por mais tempo que qualquer outro participante à cerimônia. Discursou por quase 40 minutos. Esquecido de que não cabe a cada governante criticar seu antecessor, disse que o Brasil tinha tido um “governo fascista” estes últimos quatro anos. Faz coro à declaração que Bolsonaro deu um dia na ONU, quando informou ao mundo que ele “tinha salvado o Brasil do socialismo”. Como se vê, os dois dirigentes jamais perdem a elegância.

Cúpulas desse tipo são organizadas para discutir o que virá, não o que já foi. Incorrigível, Lula continua a culpar terceiros pelas dificuldades que ele tem de enfrentar. Em 2003, chamou a herança recebida de FHC de “maldita”. E agora reincide, ao avaliar seu predecessor como “fascista”. Pode até ser verdade, mas roupa suja se lava em casa, não no exterior, diante de um palco iluminado e pouco interessado nessas rusgas.

Com a Ucrânia fora da pauta, ressurgiu o Lula “pai dos pobres”, o defensor perpétuo dos pequeninos. Ele discorreu sobre as insuportáveis desigualdades (financeiras, religiosas, raciais, de gênero) que mancham a imagem do planeta.

Falou de Amazônia. Prometeu reunir-se com os demais países amazônicos para, juntos, porem de pé uma agenda comum para o desenvolvimento sustentável das florestas tropicais. Descreveu as diversas ameaças que pesam sobre a região, como garimpo e desmatamento ilegal. Prometeu esforçar-se para pôr ponto final, antes do fim de seu mandato, ao desmate fora da lei.

Falou da fome no Brasil e no mundo. Disse que os governos de seu partido (dele e de Dilma) tinham tirado o Brasil do mapa da fome. E queixou-se de ter encontrado, ao assumir o Planalto pela terceira vez, um país de novo mergulhado no desonroso elenco dos esfomeados. Naturalmente, acusou o governo “fascista” que lhe precedeu.

Luiz Inácio lembrou que está com 77 anos, mas vigor de um jovem de 30. Convidou todos os presentes a comparecerem à COP30, a realizar-se em 2025 em Belém do Pará. Prometeu mostrar a todos o resultado de sua política de desmatamento zero.

Houve um ponto em que a fala de Lula pareceu surreal. Foi quando ele insistiu no advento de uma “governança mundial”. Em sua visão, isso se traduz pela criação de um organismo supranacional que toma decisões aplicáveis a todos os países sem necessidade de ratificação pelo Parlamento de cada país.

Essa afirmação é muito surpreendente. Entra em choque com outro cavalo de batalha de Luiz Inácio – aliás repetido no mesmíssimo discurso de hoje. Como tem feito em outras ocasiões, nosso presidente aproveitou essa cúpula para mostrar-se irritado de ter de utilizar o dólar americano como moeda internacional de trocas comerciais.

Como se vê, o desprendimento de quem está disposto a abrir mão de uma parte da soberania nacional para entregá-la a uma hipotética “governança mundial” entra em conflito com o ressentimento encruado de quem se sente humilhado por ter de utiliizar a moeda americana na hora de comerciar com o mundo.

Lula disse que se sentiria à vontade de comerciar em yuan com a China, em peso com a Argentina, em libra com a Inglaterra, desde que não tivesse de “comprar dólar” para fechar as mesmas operações. É puro antiamericanismo.

Antes de concluir, Lula foi esperto e disse considerar a União Europeia um “patrimonio democrático da humanidade”. Afirmou que gostaria de ver uma réplica na América do Sul.

Da primeira à última palavra, Luiz Inácio foi Luiz Inácio. Não chegou a chorar ao falar em pobreza, mas fez aquele tipo de discurso impecável, que, se não agrada, não chega a desagradar ninguém. As inconsistências passam despercebidas.

O pronunciamento foi daquele tipo que, décadas atrás, a gente chamava de “diálogo flácido para acalentar bovinos” – conversa mole pra boi dormir.

Atrasado porque jovem

José Horta Manzano

Desde criancinha (olhe que já faz tempo!), ouço dizer que o Brasil é atrasado porque é país jovem. Outros países – na Europa, por exemplo – seriam mais adiantados porque já tinham milênios de história quando as primeiras caravelas aportaram na Bahia. Em resumo, os europeus já tinham tido tempo de civilizar-se.

Acredito que os que pensam assim aceitam a teoria de um Brasil construído sobre tábula rasa, tudo começando do zero, como se nada existisse antes. Para muitos, essa explicação deve parecer razoável, razão pela qual saem repetindo por aí. Quanto a mim, acho que é pura balela. Conversa mole pra boi dormir (ou colóquio flácido para acalentar bovinos, como dizíamos).

Há que ter em mente como era a Europa na época da instalação das primeiras colônias europeias no Brasil. No século 16, Espanha e Portugal eram potências planetárias. Eram tão importantes que conseguiram do papa – a maior autoridade da época – a bênção para dividirem o globo entre eles dois, sem dar fatia a mais ninguém.

Atualmente, só nações que estão na ponta do progresso tecnológico conseguem enviar um foguete à Lua, pois não? Pois naquela época, só os países ibéricos dispunham do saber necessário para dedicar-se à navegação de longo curso. Só os dois, nenhuma outra nação. Não era pra qualquer um.

Manobrando caravelas que hoje nos parecem ultrafrágeis, portugueses contornaram a África e chegaram ao Extremo Oriente, uma façanha. Castelhanos atravessaram o Atlântico e aportaram na América. Ambos mostraram agilidade no manejo da tecnologia mais avançada. Os estabelecimentos coloniais mais numerosos na América, aliás, foram justamente fundados por ibéricos.

Vista de Mauritsstad, capital do Brasil Holandês
by Frans Post (1612-1680)

Espanhóis e portugueses não foram os únicos a povoar o território onde está o Brasil atual. Holandeses, entre outros, também por aqui estiveram, na Bahia e, sobretudo, em Pernambuco. Na época em que eles se estabeleceram em Olinda, os Países Baixos enriqueciam com o comércio. Por lá, floresciam as artes do mais elevado nível – Rubens e Rembrandt, note-se, foram contemporâneos de Maurício de Nassau, o governador-geral das colônias holandesas do Brasil.

O povoamento de nosso território não foi obra de extraterrestres. Os que para cá vieram não tinham brotado do nada. Eram europeus e traziam na bagagem, prontas para o plantio, as sementes daquele avanço tecnológico e daquela cultura milenar. Quanto a nós, somos herdeiros diretos desses milênios de civilização. Se a coisa encruou, não foi por pecado de origem, mas por erro de manipulação.

Se tivesse conseguido aliar o melhor da experiência europeia à vastidão e às promessas da nova terra, o Brasil seria um país fantástico. Não deu certo. Em algum ponto, desandou. Excetuando bolsões de excelência aqui e ali, estamos mergulhados num oceano de atraso. A causa certamente não é a juventude do país.