José Horta Manzano
Você sabia?
Nestes tempos em que vivemos sob o império do politicamente correto, o nome das coisas tem-se transformado. No entanto, de pouco adianta usar luva de pelica: a coisa continua sempre sendo a coisa, ainda que o nome tenha mudado. Mais abaixo, explico.
Desde os tempos bíblicos, existiu a dolorosa situação do recém-nascido rejeitado. Diversas razões podiam levar à rejeição:
-
- O pai desconfiava que o filho não fosse seu;
-
- O bebê apresentava um defeito físico;
-
- A família não tinha recursos para sustentar mais uma boca;
-
- A criança, fruto de amor clandestino, tinha sido dada à luz por mãe solteira.
Nos tempos de antigamente, o infanticídio era tolerado. Antes de atingir a idade em que podia servir como força de trabalho, a criança era considerada um não-ser, um objeto. Encaixava-se em estatuto análogo ao do animal.
Na Europa, o advento do cristianismo introduziu conceitos novos. A caridade e a compaixão foram enaltecidas. Pouco a pouco, o infanticídio passou a ser visto como ato criminoso. Vez por outra, no entanto, crianças continuavam a ser rejeitadas. Como fazer para conciliar crime e virtude?
Pelo fim do século XII, na Itália e na França, uma solução surgiu. Conventos e hospitais (ou hospícios, como eram chamados na época) instalaram um dispositivo engenhoso. Tratava-se de um tambor, geralmente de madeira, embutido num canto discreto da parede. A peça, que girava em torno de um eixo vertical, era oca e tinha uma abertura. Quem estivesse do lado externo podia girar o tambor para inserir, no oco, um recém-nascido. Em seguida, bastava dar meia-volta ao dispositivo para o neonato se encontrar do lado de dentro.
Antes de desaparecer nas sombras da noite, a mãe puxava uma cordinha para avisar que um pequenino acabava de chegar. Assim, em toda discrição, abandonava-se um bebê sem ter de recorrer ao homicídio.
Na Itália, o sistema chamou-se Ruota degli esposti(1) ‒ roda dos expostos. Na França, deram-lhe o nome de Tour d’abandon ‒ torno de abandono. Aliás, também no Portugal medieval, o dispositivo era conhecido como torno. Esses tambores multiplicaram-se e espalharam-se por toda a Europa até o fim do século XIX quando começaram a rarear.
A partir dos anos 1950, ressurgiram. Os nomes antigos, hoje, chocam. Foram substituídos por perífrases mais suaves: Le berceau de la vie ‒ o berço da vida; Culla per la vita ‒ berço para a vida; Baby box ‒ caixa de bebês.
Na Alemanha, existem atualmente cerca de 200 desses tambores, chamados Babyklappe ‒ caixa de bebês ou Babyfenster ‒ janela de bebês. A prática tem-se espalhado. A primeira boîte à bébés(2) da Suíça Francesa foi inaugurada estes dias. Hoje em dia, já não precisa tocar o sininho. Um detector de presença indica que a cegonha acaba de trazer um pequenino.
Não sei se no Brasil existem dispositivos assim. Se não existem, está mais que na hora de pensar nisso. É sempre menos desumano que abandonar recém-nascido em caçamba de lixo.
(1) Uma curiosidade
O sobrenome italiano Esposito indica que, setecentos anos atrás, o patriarca da estirpe foi abandonado, quando recém-nascido, na Ruota degli esposti ‒ roda dos expostos. O sobrenome tem variantes (Esposto, Esposti, Espositi) e é particularmente presente na região de Nápoles.
(2) Outra curiosidade
A palavra francesa boîte, que se pronuncia boate, significa caixa. A casa noturna que conhecíamos no Brasil como boate diz-se, em francês, boîte de nuit ‒ caixa de noite. Etimologicamente, a palavra descende da mesma raíz que deu box em inglês e buxo em português (um arbusto comum na Europa, mas raro no Brasil). Interessante, não?
Publicado originalmente em 3 fev° 2016.