Problemas burocráticos

José Horta Manzano

Uns vinte anos atrás, tive contacto profissional com um comerciante gaúcho chamado Roque, estabelecido na cidade de Lajeado, no Vale do Taquari. Homem honesto e fino, acabamos ficando amigos.

Roque, pessoa de boa cultura, me contou o drama pessoal que tinha atravessado anos antes. Era alcoólatra. O desregramento tinha-se apresentado já no fim da adolescência e não fez senão agravar-se com a idade.

Mesmo casado e pai de família, ele continuou sob o domínio do álcool. Com os anos, a situação foi piorando. Entre um gole e outro de chimarrão, ele mesmo contava, com seu saboroso sotaque do Sul: «Primeiro, bebi meu dinheiro; depois, bebi meu carro; por último, bebi minha casa e fui parar na rua».

Perdeu o que tinha. Foi rejeitado por família e amigos. Virou um trapo. Até que um dia uma mão amiga lhe mostrou o caminho. Roque aprendeu que o alcoolismo é uma doença. Incurável. Não é alcoólatra quem quer, já se nasce assim e assim se permanecerá pelo resto da vida. Só há um meio de controlar ― digo bem controlar, não curar ― o problema: a abstinência.Bebida

É basicamente o que ensinam grupos como os diversos AA (Alcoólicos anônimos). O adicto que quiser sair desse tormento tem absolutamente de evitar tomar o primeiro copo. Se sucumbir, as defesas psíquicas se afrouxarão, e ele não poderá mais parar. Para viver uma vida normal, terá de se empenhar para não tomar nem uma gota de álcool. Nunca mais. Pelo resto da vida.

Com o apoio de um desses grupos, Roque entendeu que a abstinência dependia dele. E se empenhou. Nunca mais bebeu. Ele me dizia: «Olhe que não estou curado, hein! Se tomar um copo, volta tudo de novo. Tenho de policiar-me até o último dia».

Roque achou que podia ajudar outros infelizes a se livrarem do inferno do alcoolismo. Montou, aos poucos, uma estrutura de aconselhamento e de acompanhamento de viciados. A «Central», como era chamada, foi ganhando renome. Vinha gente de longe procurando ajuda. Tudo era gratuito. A Central vivia de doações.

Quando visitei Lajeado pela última vez, faz quase duas décadas, o Roque já tinha conseguido uma casa relativamente grande, cheia de quartos, onde os novos chegados eram acolhidos por um período inicial de desintoxicação. Palestras e conselhos eram ministrados todos os dias. Uma verdadeira terapia de grupo.

O tempo passou, não fiz mais negócios com Lajeado, acabei perdendo de vista meu amigo Roque.

Outro dia, por mero acaso, fiquei sabendo que a «Central» tinha sido obrigada a fechar suas portas dois anos atrás. Por problemas burocráticos. Pelo que entendi, suas instalações não correspondiam mais aos padrões exigidos pelas leis estaduais.

Não sou especialista em tratamento de alcoólatras. Muito menos sou conhecedor das leis que regulam estabelecimentos de prevenção do alcoolismo.

Mas o bom-senso ensina que, quando aparece um problema, convém resolvê-lo. É angustiante ficar sabendo que, num País carente como o nosso, uma instituição que funcionou durante 25 anos e que prestou assistência a quase 17 mil infelizes pode ser fechada por razões menores.

Com boa vontade, sempre se encontra uma solução.

Da nacionalidade

Passaporte BRJosé Horta Manzano

Universidades costumam distribuir ― nem sempre judiciosamente ― títulos de doutor honoris causa a cidadãos preeminentes. Poíticos e artistas são as escolhas mais frequentes. É um excelente investimento: não custa grande coisa, aumenta a visibilidade da universidade e bajula um figurão.

A mim sempre pareceu uma homenagem inadequada. Um título de doutor se consegue depois de muita luta, de grande esforço, de enorme dedicação, de incontáveis sacrifícios. É um atestado de capacidade e, principalmente, de mérito. Não fica bem distribuí-lo como mimo a figurões. Chega a humilhar os que transpiraram para chegar lá.

Outro costume me chama a atenção. É a outorga do título de cidadão honorário de um município. O afago foi instituído com bastante lógica, para saudar pessoas que, embora sendo originárias de um município, tenham trazido benefícios a outro. Este último mostra seu reconhecimento ao forasteiro, em homenagem pública.

Outra coisa é distribuir títulos de cidadão honorário a torto e a direito a figurões da política ou do mundo do espetáculo. Em geral, são gente que pouco ou nada fez em prol do município outorgante. É menos grave que um título de doutor dado a quem não merece, concedo. Mas não deixa de ser um escárnio com relação à população do município.

Jornais do mundo inteiro, entre eles o francês Le Monde nos informam que uma nova modalidade de homenagem está sendo inaugurada estes dias: a distribuição de passaportes. O ator francês Gérard Depardieu acaba de receber um passaporte russo. Foi-lhe concedido por simples decreto do presidente Putin. Antes disso, a ligação do ator com a Rússia se resumia a três pontos: ter decorado às pressas algumas palavras do idioma local; ter tido um pai comunista; ter recentemente representado o papel de Rasputin num filme girado no país. Mais nada.

Nem todos os russos apreciaram. Gérard Depardieu enalteceu a “grande democracia” russa, fato que enfureceu muita gente. Por outro lado, o ator tem a fama de «lever le coude» (= levantar o cotovelo), expressão caseira que os franceses usam para apontar alguém que exagera na bebida. Um dos simpatizantes de Putin ― cineasta russo nacionalista ― não apreciou a prenda ofertada pelo presidente ao ator. Sarcasticamente, comentou: «teremos um alcoólatra a mais!».

Um artigo do Estadão online nos informa que, indagado pelo entrevistador, Gérard Depardieu respondeu que sim, aceitaria de bom grado um passaporte brasileiro, se o documento lhe fosse oferecido.

Que se distribuam, a torto e a direito, títulos honoríficos de doutor ou que se espalhem títulos de cidadão deste ou daquele município já são práticas discutíveis. Agora, que se instale a moda de oferecer nacionalidade por capricho presidencial já estamos passando dos limites.

A nacionalidade ― sua aquisição e sua perda ― estão perfeitamente definidas em nossa Constituição e em leis complementares. Outorgá-la não é, nem pode ser, direito privativo e discricionário do chefe do executivo. Para obtê-la, há um caminho a ser trilhado.

Para casos de urgente necessidade de caráter humanitário, há outros expedientes à disposição das autoridades. A concessão da nacionalidade não é mimo que se ofereça, sem mais nem menos, a figuras populares.

Nacionalidade não é brinde, é bem mais sério que isso.