Folheio o “Dicionário do Nordeste” (Cepe), de Fred Navarro, procurando entre seus mais de 10 mil verbetes palavras que expressem o que escapa à minha linguagem habitual, como escapou às pesquisas de opinião. Já não falamos a mesma língua, o Brasil e eu?
Como bem observou Marcelo Coelho em sua coluna de 4 de outubro, era para Bolsonaro, que não vale um jerimum cheio d’água, não ter voto nenhum depois do mal que fez à população brasileira. Ao contrário, o que vimos foi essa estrovação, esse estrago.
Bem, falar em voto nenhum é exagero, pois o cabra detém a máquina e sempre vai haver abestalhados no mundo, gente que tem as tripas na cabeça. Mas no máximo, vamos supor, aqueles 27% dos votos que lhe deu o povo do Nordeste, contra os 67% de Lula.
Aí, sim, a gente estaria agora mesmo arretirado da luta e caindo por uns dias na vadiação, na folia merecida depois de atravessar o raso da Catarina desse governo dos infernos. Em vez disso, que vergonha – ou como se diz no Piauí, o mais antibolsonarista dos estados, que bonito pra sua priquita, Brasil!
Eu sei, devo estar falando nordestinês com sotaque, embriagado pelo ótimo dicionário de Navarro. Minhas intenções são as melhores. Cresci num engenho de açúcar com Zé Lins, contemplei treponemas com Zé Ramalho, estudei o samba com Tom Zé, estrangeiro é que não sou.
Nunca me esqueci de um show de Bráulio Tavares no Rio de Janeiro no início dos anos 1980, quando ouvi pela primeira vez as divertidas glosas do compositor e escritor paraibano para o mote “Imagine o Brasil ser dividido/E o Nordeste ficar independente”.
Pois acabo de imaginar e não gostei: subtraído do naco acima de Minas, o Brasil já seria neste momento um aleijão, uma Gilead histérica embalada em sertanejo universitário, slogans liberaloides de faria-limers e frases motivacionais de coaches semialfabetizados.
Encaremos os fatos: sem o voto nordestino, já estaríamos rendidos ao cabrunquento encarregado de pendurar o Brasil, conta gorda e vistosa, no colar da extrema direita internacional.
Pode ser que o país acabe sendo essa desgraça mesmo, mas não ainda, não tão depressa – graças ao Nordeste. Nossa metade sadia, que está toda dolorida como se tivesse tomado um chá de casca de vaca, uma surra de chicote, sabe bem para onde remeter seus votos de gratidão.
Se o futuro fascistoide não está rebocado, quer dizer, garantido, devemos essa graça à terra abençoada de Graciliano Ramos e Jackson do Pandeiro, de Nise da Silveira e João Cabral, de Lia de Itamaracá e Mestre Vitalino, de Maria Bonita e Xico Sá.
Mas talqualmente uma lagartixa, que sabe em que pau bate a cabeça, já passou da hora de todo mundo ficar esperto e proteger o franzidinho. Depois do dia 30, se nossos irmãos lá de cima não tiverem ajuda para varrer o basculho, ninguém vai poder dizer uste nem aste, vai ter que calar o bico.
Para quem não é caso perdido, mas anda com leseiras de neutralidade, um aviso: ou a gente elege o filho de Garanhuns ou pode esquecer. Mais quatro anos daquele xexéu e não vai ter democracia mais, não vai ter floresta mais, não vai ter índio mais, não vai ter Brasil mais.
Aí o jeito vai ser adotar a saída Bráulio Tavares e declarar a independência do Nordeste, quem sabe acompanhada da reivindicação do nome Brasil, que, acredito, o Bolsonaristão não fará questão de manter. Já estou estudando com o mestre Navarro para requerer minha cidadania.
(*) Sérgio Rodrigues é escritor e jornalista.
Juro que pensei a mesma coisa: separar em definitivo o nordeste do restante do país. Não aceito continuar morando no Bolsonaristão.
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Há quem pense que as colônias portuguesas da América teriam tido mais sucesso se tivessem formado 3, 4 ou 5 países em vez de um só. Quem sabe chegou a hora de dividir e assim corrigir o erro de 1822?
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