José Horta Manzano
Em alguns países de tradição católica, 15 de agosto é dia feriado. Festeja-se a Assunção(*) – a subida ao céu de Maria. Segundo a tradição, a mãe de Jesus não teria realmente morrido, como um mortal qualquer. Chegada ao final de seu percurso terreno, apenas fechou os olhos por um momento para, em seguida, reabri-los e ser levada, de corpo e alma, ao reencontro familiar: Pai, Mãe e Filho.
Em Portugal, descreve-se esse momento como “Dormição de Maria”. Sempre achei curioso os alemães utilizarem a palavra viagem para descrever a Assunção: “Mariä Himmelfahrt – A viagem ao céu de Maria”. Enquanto costumamos dizer, mais poeticamente, “subida aos céus”, o alemão é mais realista. Talvez seja implicância minha, mas a palavra viagem traz lembranças bastante físicas que quebram o encanto e o mistério do fenômeno.
Ao sentir que, em pleno século 20, estava ficando complicado fazer o povo acreditar candidamente nessa narrativa, o papa Pio XII resolveu utilizar a mão pesada. Numa bula de 1950, impôs a Assunção de Maria como dogma de fé, ou seja, verdade indiscutível, daquelas que o fiel tem de aceitar sem protestar.
Pelo ensinamento da Igreja, o destino de todos os fiéis, no final, será o mesmo de Maria. Ela simboliza esse futuro comum a todos. A diferença é que ela foi pela via expressa; quanto aos outros, cada qual vai seguir o próprio caminho, que pode ser mais (ou menos) pedregoso. Bom, tem aqueles que vão parar no inferno, mas essa já é uma outra história, que fica para uma outra vez.
Em Portugal, o 15 de agosto é feriado nacional. Quanto aos vizinhos espanhóis, têm tantas festas municipais e regionais, que o dia praticamente pode ser visto como feriado nacional. No Brasil, talvez já tenha sido dia de festa nos tempos de antigamente, mas não encontrei menção. Atualmente, apenas alguns municípios, como Belo Horizonte e Fortaleza, festejam esse dia.
Na Itália, a data é uma das mais marcantes do calendário. Tem até nome especial: chama-se Ferragosto, uma corruptela da locução latina “Feriae Augusti – o Repouso de Augusto”. Oficializada pelo imperador Augusto na base de antiquíssimas festividades, a data marcava o início do período de descanso que se seguia ao fim da parte mais pesada do trabalho nos campos. Os arados (e os animais de carga que os puxavam) podiam repousar.
Hoje em dia, o arado não é mais puxado por animais, mas a tradição festiva continua, reforçada pelo fato de o 15 de agosto cair no meio das férias de verão, no período mais quente do ano, em que multidões aproveitam o feriado para tirar alguns dias de descanso.
Em toda a península, aeroportos e estações de estrada de ferro ficam apinhados – em modo covid, naturalmente. Na era pré-internet, muita gente mandava cartão de Bom Ferragosto, assim como quem deseja Feliz Natal. Há quem continue firme na tradição, só que hoje vai por uótisápi. O simbolismo religioso do feriado passou para segundo plano.
Essa tradição de deslocamento populacional foi inaugurada e intensificada durante o período fascista, nos anos 1920 e 1930, com a criação das “excursões populares” incentivadas pelo governo central. Como ainda ninguém tinha tido a ideia de dar prêmios ao povão do tipo bolsa família, foi a maneira bolada pelos dirigentes da ditadura de proporcionar “panem et circenses – pão e [jogos] circenses” ao povão.
Ignaros e distantes dessas chatices históricas, nossos atuais dirigentes, que parecem todos ter fugido da escola, descuidaram essa prática milenar de adubar o povo. Em vez de pão, entregam inflação. Em vez de jogos circenses, distribuem bofetadas e insultos diários. Desventurado Brasil!
(*) Apesar da vaga semelhança fonética com “ascensor”, o termo assunção não tem a ver com elevador. Pertence a outra família. Deriva do verbo latino assumere, cujo sentido primeiro é tomar para si, presumir, escolher. Assim, a assunção de Maria é a declaração de que a eleita é ela.
Consumir, assumir, presumir e assunto são membros da família. Presunto também é, só que, em nossa língua, o danadinho tomou outro caminho. Em vez de “presunto assassino”, temos de dizer “presumido assassino”. Presunto, como todos sabem, é outra coisa.
Essas palavras que tropeçam e saem da linha são o sal e a pimenta das línguas.
Interessante como a igreja católica prestigia Maria que nas narrativas contidas na Bíblia limitou-se a gerar Jesus, sem nenhum outro destaque e/ou ocorrência relevantes.
Nem mesmo Cristo atribuiu-lhe a importância que lhe é dada pela igreja católica sendo que a tal “assunção” não é sequer mencionada na Bíblia.
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As práticas litúrgicas não costumam ser extraídas diretamente das Escrituras. São geralmente fruto de tradição secular. Muitas delas têm origem na Idade Média, período de grandes medos e fortes superstições.
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E vamos de mal a pior, aceitando o açoite. Me pergunto até quando. Nesse mundo machista, a mulher continua com o mesmo papel de mãe, às vezes imposto e outras vezes imposto também. Nas escrituras, tem pouca referência, mas na atualidade, Maria desempenha outras funções, tem outra imagem. Apesar da mudança, ela continua complacente, de braços abertos, mostrando o real sentido do que foi pregado por seu filho. Poucos entendem.
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É o simbolismo da mãe bondosa, compreensiva e acolhedora, em toda sua plenitude. Acredito que todas as civilizações têm uma figura feminina equivalente.
Como diz o outro, pais são muitos, mas mãe tem uma só. Isso reflete o fato de a concepção ser um momento privado, enquanto o nascimento é público. Nem sempre se sabe quem é o pai, mas a mãe é sabida e conhecida.
Nas religiões do Ocidente, a figura feminina representa a certeza, a estabilidade, a previsibilidade. Por oposição ao Deus colérico e impetuoso do Velho Testamento, o cristianismo enalteceu Maria, a mãe benevolente que tudo perdoa.
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Um dado que muita gente esquece é que, caso Maria fosse considerada uma divindade e não apenas uma mulher submissa, o monoteísmo entraria inevitavelmente em contradição. Só há um Deus para o catolicismo e, ainda assim, dividido nas 3 figuras de pai, filho e espírito santo. Até na Ave Maria, a liturgia ensina que ela deve ser tratada como “tu” e não como “vós”, que só pode ser aplicado a Jesus Cristo e seus santos. A ascensão de Maria também é de um simbolismo complicado, já que se trata de um “privilégio” não concedido ao comum dos mortais.
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O “fruto do [vosso] ventre”, o “bendita [sois] entre as mulheres” e o “[rogai] por nós” contradizem o que você diz sobre o pronome de tratamento. Ou será que mudou?
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A oração Ave Maria não consta da Bíblia, é criação da igreja católica, bem diferente da oração do Pai Nosso que foi ensinada por Jesus Cristo aos apóstolos.
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Em português, talvez, mas no latim a gente reza “benedicta tu”, “benedictus fructus ventris tui” e ora pro nobis”
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Madame certamente se lembra das aulas de catecismo. Embora ainda estivéssemos em época bem anterior ao Concílio Vaticano II, as orações já nos eram ensinadas em língua vernácula. O latim já havia sumido desde a época de Descartes. Assim aprendemos. Portanto, Maria já era ‘vós’ e, suponho que assim continue.
Se diferenças de abordagem há entre divindades masculinas e femininas – e é certo que há – não são perceptíveis pelo pronome de tratamento. Pronome, que, francamente, tem importância quase nula numa época em que o povo não sabe mais fazer diferença entre ‘tu’ e ‘cê’. Com ‘vós’ então…
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