José Horta Manzano
Para reavivar memórias de infância.
Se meu jovem leitor está ainda na casa dos vinte ou trinta anos, o que vou dizer agora parece vindo direto do planeta Marte: nos anos 1950, as crianças do Brasil brincavam na rua. Yes! Na rua, pé no chão, em cima dos paralelepípedos! Nas pequenas e até nas grandes cidades! Era um tempo em que ninguém era obrigado a fugir de bandido nem de bala perdida. Para os brasileirinhos de hoje, deve até parecer invenção da mídia intriguenta.
Naquele tempo sem televisão e sem videogame, os maiorzinhos jogavam pelada, enquanto os pequeninos brincavam de roda. Meninos e meninas misturados, que a sexualização da pequena infância ainda não estava em voga.
No hit parade, figurava o Soropango da vingança, uma cantiga importante. Como em todos esses cantos populares tradicionais, todo o mundo conhecia a mesma melodia, mas havia inúmeras versões da letra – cada família tinha a sua. As palavras eram misteriosas, desconexas, sem pé nem cabeça, mas ninguém ligava muito pra isso. O importante era que letra e música se encaixassem. Com a repetição, a cantiga acabava se fixando na memória. A prova de que repetir é bom pra decorar está aqui: passadas tantas décadas, a gente se lembra de tudo, de cabo a rabo.
A letra que aprendi com minha turminha era assim:
Soropango da vingança
Toda a gente passa lá
A costureira faz assim,
Faz assim também assim;
A passadeira faz assim,
Faz assim também assim;
A lavadeira faz assim,
Faz assim também assim.
E aí desfilavam todos os ofícios que a criançada conhecia – e que pudessem ser mimados.
Há quem diga que Soropango da vingança era calcada sobre a antiquíssima cantiga francesa Sur le pont d’Avignon (Na Ponte de Avignon). É verdade que, depois de passar pelo filtro da língua popular, “sur le pont” pode bem ter virado “soropango”, assim como “d’Avignon” é bem capaz de ter se tornado “da vingança”. É verdade também que o espírito da cançoneta é o mesmo. Tanto a francesa medieval quanto a nossa colonial mimam os gestos de pessoas ou de artesãos.
No entanto, em desagravo à musicalidade de nossa alma cabocla, frise-se que a melodia de nosso “Soropango” é bem diferente da francesa. Faz até parecer que o criador da cantiga brasileira pescou a ideia no original e criou melodia própria. Em todo caso, nossa versão é bem mais melodiosa que a original.
Sur le pont d’Avignon
Encontrei a versão francesa no youtube. Está aqui
Soropango
No youtube, não achei nosso Soropango. Que não seja por isso: fiz uma gravação caseira da melodia que me ficou na memória. Está aqui.
Curiosidade
Um vilarejo da Costa do Marfim leva o nome de Sorobango. Imagino tratar-se de pura coincidência fonética.
Tive a sensação de que habito outro planeta. Jamais ouvi a melodia e nunca brinquei de roda com minhas amigas cantando essa letra – ou qualquer outra similar. Onde foi que me perdi?
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Acho que essa cantiga do Soropango não era tão conhecida quanto “Carneirinho, carneirão” ou “Teresinha de Jesus”, o que explica que não apareça no youtube nem mesmo na internet. Ao vasculhar, a única menção ao Soropango que encontrei está num texto de Oswald de Andrade. E mais nada.
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Lembro principalmente quando na canção fala de como as pessoas executavam suas profissões. Será que a Myrthes brincava na rua?
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