José Horta Manzano
No dia 14 de julho de 1789, a prisão da Bastilha foi tomada por uma turba de cidadãos enfurecidos. O prédio sinistro costumava abrigar inimigos do rei, gente que lá podia ficar trancada por anos a fio, sem sombra de processo, dependendo unicamente da vontade pessoal do soberano. A liberação dos poucos prisioneiros ficou na história como o início da Revolução Francesa.
Três semanas mais tarde, na noite de 4 de agosto, a Assembleia Constituinte, encarregada de lançar as bases do novo regime e de organizá-lo, decretou a abolição dos privilégios. A decisão marcou o fim do sistema feudal na França. A partir daquele dia, caíam por terra todos os privilégios pessoais, de família, de classe, de região, de cidade, de corporação ‒ todos eles característicos da estrutura feudal.
Uma análise feita hoje, passados dois séculos, mostra que a ordem feudal desapareceu, mas os privilégios ainda resistem. As leis que valem para uns mas não para outros continuam firmes e fortes. De fato, não são muito diferentes das que a Revolução imaginou banir. Persistem praticamente no mundo inteiro. Em qualquer parte, determinadas corporações e certas categorias de cidadãos são “mais iguais” que os demais.
No Brasil, assim como em outros rincões pouco esclarecidos, é particularmente visível a persistência do tratamento diferenciado que se dispensa a castas especiais, ainda que sejam acusadas de ter cometido crimes gravíssimos. Faz algumas semanas, senhor Cabral (antigo governador do Rio de Janeiro) e digníssima esposa foram acusados de uma enxurrada de crimes. Levados para o xilindró, tiveram direito a essas fotos que se tiram de bandidos, de uniforme de cadeia com régua escalonada ao fundo.
Estes dias, uma juíza brasileira, de passagem por Paris, há de ter ficado de mau humor ao se dar conta de que a Prisão da Bastilha já não mais existe, tendo cedido lugar a uma praça urbana. Talvez despeitada pela descoberta, há de ter imaginado que a abolição dos privilégios não passava de lorota. Sem hesitar, despachou de Paris mesmo ‒ em atitude pouco usual. Decidiu em favor da soltura da digníssima esposa do governador encarcerado. A razão invocada é que a moça tem filho menor de 12 anos, que não pode ficar sem a presença diária e constante da mãe.
Este blogueiro é do tempo em que, na falta dos pais, crianças pobres iam para o orfanato e guris ricos, para o colégio interno. Quero crer que, ainda que o casal seja inocente das acusações de que é objeto, há de ter economizado o suficiente para evitar a Assistência Pública e mandar o filho para um bom internato. Afinal, o marido foi governador de um dos Estados mais importantes da União.
Inevitável e logicamente, vozes se alevantam lembrando que, se esta senhora pode, por que não as outras? Se toda prisioneira com filho menor de 12 anos tiver de ser solta pelo mesmo motivo, vai haver boa debandada dos presídios femininos. Afinal, privilégios foram abolidos ou não?
Nota etimológica
Privilégio é palavra que já veio formada da língua latina. Compõe-se de dois elementos.
● Privus
Singular, só, particular, que basta a si mesmo;
● Legem
Lei (da mesma raiz que ligar, legal, legítimo ‒ aquilo que obriga).
Diz-se privilégio, portanto, da lei privada, que vale somente para um indivíduo ou para pequeno grupo. Contrapõe-se ao direito comum.
Caro Manzano,
Imagine se a mesma juíza fosse confrontada a decidir sobre o casal Nardoni (caso em que a filha deles, criança ainda pequena, passa pela angústia da perda de ambos os genitores para as barras prisionais)?
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Tem razão, caro Vissoky. O brasileiro tem mostrado certa dificuldade em entender que crimes de colarinho branco, aqueles cujo autor não tem sangue nas mãos, são menos graves.
De fato, o clamor popular é mais violento quando o criminoso tira a vida de uma pessoa do que quando o delinquente é responsável pelo sofrimento e morte de milhares de cidadãos. A meu ver, desviar dinheiro do povo é crime de genocídio. Seus autores deveriam ser julgados como assassinos em massa.
Basta ter em mente que, ao que se saiba, Hitler, Mussolini, Stalin & alii nunca empunharam arma para atacar quem quer que seja. No entanto, são diretamente culpados de trucidar dezenas de milhões de semelhantes.
Não sei que força levou a juíza a despachar de Paris(!) e a soltar a antiga primeira-dama. Aí tem coisa…
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É inacreditável o que se presencia neste país não sabemos a que ponto absurdo poderemos chegar. Falta de vergonha dessa juiza.
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