Falta troco

José Horta Manzano

Na Europa, especialmente do centro para o norte, nunca falta troco. Tanto faz que a moeda nacional seja o euro, o franco suíço, a coroa sueca ou outra qualquer ‒ moedas circulam. Todo cidadão costuma ter, caixa de supermercado tem, padaria tem, farmácia tem, vendedor de cachorro-quente também.

No Brasil, o problema da falta de troco é crônico. Desde os tempos de antigamente, é realidade aceita bovinamente, não surpreende ninguém. Tanto faz que as moedinhas tenham um certo valor, como no início do Plano Real, ou que valham pouco, como agora. A escassez é proverbial. Cada um tem sua explicação para o curioso fenômeno.

capote-1Há quem desconfie de malandragem: o comerciante tiraria sistematicamente as moedas do caixa criando, assim, uma desculpa para não dar troco. Outros acusam o acaparamento de metal, reminiscência do tempo em que se acumulavam moedas de ouro e prata. Há ainda os que consideram que não vale a pena carregar peso por valor tão baixo.

Tenho a minha teoria. O fenômeno pouco tem a ver com malandragem, ganância ou desprezo pelo vil metal. O problema é meramente climático. Nos países frios, o longo inverno obriga o cidadão a sair à rua encapotado oito meses por ano. Capotes, mantôs e casacos são cheios de bolsos. Como são já pesados por natureza, um punhado de moedas não faz grande diferença. Vai daí, antes de sair de casa, a gente apanha automaticamente uns cobrinhos e põe no bolso. Assim, é natural, o troco jamais falta. Ainda que o cidadão saia de casa sem moedas, ao voltar, depois de duas comprinhas, vai estar com o bolso repleto.

dinheiro-8Para coroar, toda agência de correio fornece moedas a quem pedir. Elas vêm empacotadas em rolinhos de papel. Na Suíça, cada rolo contém 50 moedas de mesmo valor. Nenhuma cobrança extra é exigida: o preço do rolinho corresponde ao valor das moedas. Dessa maneira, nenhum comerciante tem pretexto para falta de troco.

A solução do problema brasileiro é meio complicada. Não vejo outra saída senão ter paciência e esperar pela próxima era glacial. Periga demorar.

A arte de criar problemas

José Horta Manzano

Cofrinho 2Ouvi agora no rádio que, no Brasil, há escassez de troco. Confesso que não sabia. Parece que comerciantes dão tratos à bola para não ouvir reclamação de fregueses. Tem padeiro que dá pãozinho a quem trouxer 50 ou 100 reais em moedinhas. Uma cadeia de lojas de sanduíche de carne moída (ambúrgui) oferta lanche tamanho família contra aporte de um punhado de moedas.

Nos anos 50, era crônica a falta de troco. Não só moedas, mas notas de pequeno valor – chamadas então ‘manolitas’ – eram bem precioso que a gente relutava em passar adiante.

Nas décadas seguintes, com o galope inflacionário, moedas desapareceram. Tudo melhorou a partir de 1994. Com a estabilização garantida pelo Plano Real, problema de falta de troco já deveria fazer parte do folclore nacional. Surpreso, descubro que não é bem assim.

Segundo a repórter que ouvi, não precisou delação premiada para designar o culpado: é o cofrinho. Foi afirmação convicta. A moça disse que, pouco afeito ao uso de moedas, o povo tende a tirá-las de circulação para entesourá-las.

Cofrinho 1Pouco afeito ao uso de moedas? Não faz sentido. Brasileiro com menos de 30 anos não conheceu a vida sem moeda. Até os mais velhos já se acostumaram (ou se reacostumaram) a manusear pecinhas de metal.

A Casa da Moeda se defende dizendo que fabricou não sei quantos milhões de moedinhas. Recomenda aos cidadãos utilizá-las em suas trocas diárias permitindo, assim, que circulem.

O distinto leitor certamente concordará comigo se eu disser que, no Brasil, criar problemas insolúveis é esporte nacional. Veja, pois:

Interligne vertical 16Por um lado, autoridades financeiras lamentam que a poupança média do brasileiro seja uma das mais baixas do planeta – o que é prejudicial ao País. Compra-se a crédito. Gasta-se o que não se possui. Contraem-se dívidas. Depositam-se todas as esperanças num amanhã que não se sabe de que será feito.

Por outro lado, as mesmas autoridades incentivam a população a abandonar o esboço do rascunho do começo de uma incipiente cultura de poupança. O cofrinho é excelente meio didático de infundir no pequerrucho o costume de guardar para dias incertos.

E pensar que a solução do problema é tão simples: basta cunhar mais moedas. Não é complicado, não?

Excerto do solilóquio de Hamlet, na peça homônima de William Shakespeare. Facsimile da edição de 1604

Excerto do solilóquio de Hamlet, na peça homônima de William Shakespeare.
Facsimile da edição de 1604

To be or not to be. As diretivas oficiais parecem indicar esquizofrenia. Mas a verdade é mais simples: os que dão essas ordens são simplesmente incapazes. Incapazes de refletir e incapazes de se pôr de acordo.

Nada pode ser e não ser ao mesmo tempo – que se há de fazer? Quatrocentos anos atrás, Shakespeare já punha na boca de Hamlet essa incontornável obviedade.