Desmascaração astral

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Inventei o neologismo acima para designar uma dolorida ação orquestrada por forças astrais para me forçar a um autoexame de consciência. Ainda não sei bem qual o propósito de passar por essa experiência, se o de apontar preconceitos, vulnerabilidades e defeitos de caráter que ainda existem dentro de mim – mesmo que eu os negue peremptoriamente – ou o de me induzir a dar mais alguns passos em direção à evolução espiritual.

Tudo começou com um sonho. Eu caminhava por uma estrada asfaltada, ao lado de várias pessoas. Não via o rosto de ninguém, só enxergava as panturrilhas dos que caminhavam à minha volta. De repente, um tumulto. Todos se aglomeram do lado esquerdo da pista e apontam para baixo. Comentam angustiados uns com os outros algo que não entendo, mas que me parece de mau augúrio. Inclino-me para frente para verificar com os próprios olhos o que aconteceu. Ao fazê-lo, acabo me dando conta que a estrada desbarrancou. Vejo areia por debaixo do asfalto e concluo que, apesar de sua aparente solidez, a estrada havia sido construída sobre uma base instável.

Mesmo com medo de cair, inclino-me um pouco mais e percebo que há uma vala de esgoto lá embaixo. Alguém grita que há um corpo de mulher caído dentro dela. Um homem a meu lado olha detidamente o rosto da mulher e a identifica. Quando ele pronuncia o nome de família da moça, me desespero: eu também a conheço. Era uma colega de trabalho que sempre me inspirou admiração por sua competência, disposição e senso de humor. Pergunto-me por qual razão ela teria tido um fim tão trágico. Acordo com uma sensação de injustiça, difícil de entender.

Por mais que eu relutasse em a aceitar, a mensagem do sonho parecia clara: um abismo me separava daquela mulher e o desnível entre nós estava atrelado ao seu sobrenome. Não havia como interpretar de outra forma: simbolicamente, eu estava sendo acusada de discriminação social. Essa possibilidade me desestabilizou emocionalmente por alguns dias. Sentia que não era merecedora da pecha de preconceituosa e, por mais que buscasse outras evidências nesse sentido, não encontrava nada. Quando minha consciência já estava um pouco mais apaziguada, lá veio um segundo sonho.

Eu estava coordenando um workshop, não sei bem com qual objetivo. Apesar de não ser intervalo para almoço, os participantes estavam dentro do restaurante, agrupados em torno de uma pilha de pratos e tigelas. Os ânimos estavam exaltados, todo mundo falava ao mesmo tempo e me incomodava muito a sensação de desorganização do evento. Eu tentava chamar a atenção de um funcionário, pedindo que ele me trouxesse mais peças com uma determinada decoração. Outras pessoas faziam pedidos similares. Perdido em meio ao tumulto, ele me responde que não havia mais nenhuma à disposição. Assim não vai dar, pensei com meus botões.

Irritada, comecei a me perguntar qual era, afinal, o sentido da tarefa proposta: só agrupar peças de porcelana com base no padrão de decoração ou haveria um propósito mais “filosófico” para ela, que me escapava? Fosse como fosse, tudo aquilo me parecia absurdo, superficial demais para um treinamento.

Cansada, sentei-me em um banco, tentando recuperar o controle da situação. De repente, um rapaz sai da cozinha, todo suado, de tamancos, e abanando-se com um pano de prato. Senta-se displicentemente a meu lado e começa a conversar com um colega, aos gritos. Minha irritação cresce com a descompostura dos dois. Acordo perturbada, mais uma vez com a sensação de estar estava sendo injustiçada. Desta vez, duplamente: de um lado, acusada de não saber fazer meu trabalho, e de outro, novamente de não saber lidar com as diferenças de classe.

O terceiro sonho veio após mais alguns dias. Eu dirigia meu carro por uma das avenidas mais movimentadas de São Paulo, com corredores de ônibus nos dois sentidos. Era uma tarde bonita de sol e o trânsito fluía bem. De repente, sinto vontade de estacionar e ir até uma concessionária de automóveis que ficava do outro lado da pista. Paro, desligo o carro, deixo a chave na ignição e atravesso a rua, com total despreocupação. A conversa com o gerente da concessionária foi ficando animada e eu fui-me deixando ficar. Ao sair, constato o óbvio: o carro não estava mais onde o deixei. Desta vez, não havia como me eximir da responsabilidade pelo infausto resultado.

Negligência, irresponsabilidade, imprevisão, incapacidade de planejamento, insensibilidade social, prepotência, arrogância. Sem dúvida, as forças astrais encontraram duras maneiras de me apresentar a mim mesma. Ainda estou cheia de hematomas causados por tantos golpes contra minha autoestima. Não que esse confronto com as zonas de sombra do meu psiquismo constitua propriamente uma novidade. Ao contrário, sempre me considerei uma fraude, prestes a ser desmascarada por um observador mais atento. Sei que minha doença tem até nome: a síndrome do impostor.

Mas uma coisa ainda me intriga: por que os sintomas voltaram agora? Minha vida parecia ter se estabilizado depois do trauma da perda de minha filósofa canina preferida. Num segundo, a ficha cai. Volta à minha cabeça uma frase emblemática: “Não apresente o olhar de admiração de seu cachorro como prova de que você é uma boa pessoa”.

É isso! Sem o espelho compassivo dos olhos da Molly, não tenho como explorar meus melhores ângulos, não pertenço mais à família dos leves de alma e caminho sem destino sobre um terreno falsamente sólido.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Tempo de chutar todos os baldes

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Para meu supremo desgosto, pareço ter me transformado em uma espécie de Mãe Dinah de segunda classe. Ultimamente tenho tido visões catastróficas às dezenas, pressentimentos esdrúxulos e premonições que me enchem de pavor ainda que nem sempre se concretizem. Quando minhas previsões pessimistas falham, não sinto pudor em alegar que o mal foi desviado graças a meu poder espiritual. Em última instância, culpo minha própria incapacidade de decodificar de maneira correta as mensagens recebidas de meus guias.

Ainda ontem tive um pesadelo que me deixou abalada o dia todo. Nele, encontrava na rua o marido de uma amiga. Ele estava de pé, descontraído, parado em frente a um ponto de ônibus, visivelmente mais magro. Recentemente, essa amiga tinha me confidenciado que ele estava muito doente e havia se mostrado abatida com as frágeis perspectivas de solução do quadro médico. Embora eu e ele tenhamos conversado poucas vezes e somente sobre temas do cotidiano, no meu sonho ele parecia feliz por me reencontrar e mostrava-se confortável na minha presença, como se fossemos velhos amigos. Olhando para sua figura serena e percebendo a luz que emanava de seu rosto sorridente, perguntei como tinha evoluído seu quadro de saúde. Ele me olhou confiante e respondeu: “Ah, muito bem! Alcancei tudo o que eu queria”.

freud-1Ao acordar, me perguntei se o sonho podia ser interpretado como sinal de bons presságios ou se tudo não passava de uma forma de ele me usar como mensageira de seu último desejo de tranquilizar o coração da companheira. Passei o dia tentando espantar as nuvens sombrias da segunda alternativa, sem sucesso. Me intrigava a sensação de coração apertado diante de uma situação que não me dizia respeito diretamente, envolvendo pessoas com quem não tenho muita intimidade.

Recorri a Freud na tentativa de descortinar as motivações inconscientes que estavam em jogo. Se, como dizia o velho Sigmund, os sonhos são a realização distorcida de um desejo, quem ou o que eu estava querendo matar? A opressão masculina, a fé nos milagres, a desconfiança da capacidade humana de amorosidade duradoura ou, quem sabe, o poder da intuição feminina? Seja como for, nenhuma das interpretações possíveis me convenceu. Apelei ao plano espiritual. Acendi uma vela e rezei pedindo iluminação.

Também não resolveu. Embora me sentisse um pouco mais tranquila, fui me deitar ainda abrigando no peito a sensação de impotência para alterar os rumos de qualquer coisa, fosse o de minha vida ou o de qualquer outro destino. A última coisa que ouvi antes de fechar os olhos foi o relato da apuração dos votos da eleição presidencial em alguns Estados americanos.

Por volta das quatro horas da madrugada, despertei num pulo, com o coração batendo apressado e angustiado. A primeiríssima ideia que cruzou meu cérebro foi: Donald Trump ganhou as eleições! O pensamento me encheu de pavor: tinha o gosto de pesadelo inaceitável, era como estar vivendo os minutos que antecedem a declaração da Terceira Guerra Mundial. Em segundos, percorri mentalmente as reações inflamadas dos líderes dos países mais influentes do globo. Cenas de guerra, terrorismo, destruição ambiental, caos econômico, intolerância religiosa, milhões de pessoas protestando nas ruas, tudo veio à tona de forma devastadora.

cama-1Ainda tentei me confortar, dizendo para mim mesma que imaginar toda essa catástrofe podia ser mera decorrência de uma crise de hipoglicemia. Para quem nunca passou pela experiência, explico: quando falta glicose na corrente sanguínea, o cérebro chama para si os últimos resíduos na tentativa desesperada de preservar a si mesmo. As consequências são apavorantes: taquicardia, tremores incontroláveis por todo o corpo, suor frio e sensação de morte iminente.

Levantei, fui à cozinha, tomei água e comi tudo que pudesse rapidamente se transformar em açúcar. Não adiantou. Arrepios continuavam a percorrer minha coluna e a sensação de desamparo não me deixou. Voltei para a cama e me encolhi, agarrada às cobertas, como se elas fossem uma espécie de tábua de salvação. Demorei a retomar o sono e, para espantar a angústia, fiz mais uma vez um pedido silencioso aos santos para não ter de passar por essa provação.

Ao acordar, liguei ansiosa o computador. A imagem que tomava toda a tela de um homem sorridente de topete prescindia de explicações: o desastre estava consumado. Passado o sobressalto, uma luz brilhou no fundo do meu cérebro: as cartas estavam todas na mesa havia muito tempo ‒ como é que eu não havia percebido antes? Minhas experiências paranormais não eram profecias, representavam apenas minha recusa em apostar na minha própria sensibilidade. O recrudescimento do conservadorismo em todo o mundo, a irritação generalizada com os movimentos de imigração em massa e com os efeitos danosos da globalização, o Brexit, a turbulência no Mercosul, a descrença na democracia representativa, o desprezo por tudo que é sinônimo de racionalidade, bom senso e politicamente correto.

Milagrosamente, tudo entrou nos eixos e eu me acalmei. Percebi que de nada serve ficar exorcizando o que acontece fora de mim. A esperança, se é que existe, é ser capaz de mudar o que está dentro. Pode ser que os quatro cavaleiros do Apocalipse já estejam, sim, em marcha, mas não só no mundo externo. Eles fincam suas esporas no lombo da animalidade que habita o coração de cada um e que secularmente temos nos recusado a admitir.

"Ālea iacta est" ‒ frase que Julio Cesar teria lançado ao cruzar o Rio Rubicão

“Alea iacta est” ‒ “A sorte está lançada” :   Julio César ao cruzar o Rio Rubicão

Vivemos a era das “selfies” emocionais, para o bem e para o mal. Só estamos focados em nossos próprios umbigos e repetimos com orgulho diante do espelho: meu desejo é soberano, minha visão de mundo tem de prevalecer, que se danem os que pensam diferente de mim, cansei de me deixar arrastar pelas preferências da maioria.

Já é hora de todos os profetas colocarem suas barbas de molho. O futuro é definitivamente imprevisível, a ação humana não tem o poder de alterar o que está escrito nas estrelas. Alea jacta est. Maktub.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.