Descriminação

José Horta Manzano

Em princípio, não é na escola que surgem casos de descriminação, como está escrito na chamada. Termo empregado em textos jurídicos, a descriminação é o resultado do ato de isentar de crime um fato.

Já o que costuma, infelizmente, acontecer em escolas, são casos de discriminação. Significa tratar de modo injusto ou desigual alunos de religião, origem social ou cor de pele diferente da maioria. Quem agir assim estará cometendo ato de discriminação, ofensa prevista na lei penal.

Portanto:

  • descriminação (isentar de crime um fato) – começa com des
  • discriminação (tratar um grupo de indivíduos de forma desigual) – começa com dis.

Na minha opinião, o autor do título do artigo d’O Globo cometeu hipercorreção, que é o escriba substituir a forma correta por outra que lhe pareça ainda mais de acordo com o português culto.

É o mesmo mecanismo que leva muita gente a abandonar dispensa (que, embora seja a forma correta, soa errado) e substituir por despensa. Assim:

  • Estava resfriado e pediu despensa” da aula de Educação Física. (hipercorreção)

O artigo d’O Globo trata de casos de discriminação na escola, é claro.

Gerúndio criminalizado

Criminalizar gerúndio por causa do gerundismo é uma bobagem atroz

Sérgio Rodrigues (*)

Outro dia recebi de um conhecido uma mensagem que primeiro me fez sorrir, mas logo me deixou triste. O sujeito dizia que, refletindo sobre um conjunto de dados, tinha chegado a determinada conclusão.

Dados e conclusão não vêm ao caso. O que merece atenção aqui é a cunha que o meu conhecido achou importante meter no texto, entre parênteses: “Analisando (desculpe o gerundismo!) as informações disponíveis, concluo que…”.

Pensando por alguns segundos, concluí que precisava pensar por mais alguns segundos. Foi aí que a graça inicial daquilo (como assim, chamar um gerúndio perfeitamente funcional de “gerundismo”, com exclamação e tudo?) deu lugar a uma certa tristeza.

O cara não está entendendo bem o que se passa, e tem numerosa companhia. Muita gente no Brasil ouviu cantar o galo gerundista do telemarketing e concluiu que toda forma verbal terminada em “-ndo” é um ruído, um arroto, uma gafe.

Trata-se de uma bobagem atroz. O gerúndio é bacana. Versátil, vem sendo usado desde o nascimento da língua portuguesa para expressar ideias de continuidade ou frequência e criar outras modulações de tempo, modo e causa.

Embora também possam ser encontradas assumindo outras formas no vasto mundo da língua, essas ideias muitas vezes têm no gerúndio sua expressão mais elegante e concisa.

“Senhor, esteja aguardando na linha que vamos estar informando quando o senhor vai estar recebendo o produto” é uma frase ridícula, óbvio. No entanto, partir daí para condenar todos os gerúndios equivale a responsabilizar a bola pelo 7 a 1.

O que se chama de gerundismo é o vício canhestro de tratar como frequentativas –isto é, habituais, que se repetem– todas as ações do mundo. Mesmo a construção que esse modismo terminou avacalhando tem o seu lugar: “Nos próximos meses não vou viajar, estarei estudando para o Enem”.

Sendo o Brasil um país pouco letrado, com índices de leitura capazes de precipitar monges taoístas em abismos de angústia e revolta, não surpreende que tantas vezes o pessoal acabe se confundindo com a fronteira entre o abuso e o uso razoável de determinado recurso.

Quando sabemos que sabemos pouco, é natural que nossa insegurança transforme a liberdade de escolha, valor fundamental da ética e da estética, em campo minado. Daí o velho apego brasileiro à hipercorreção e a regras autoritárias em letras garrafais: isso está CERTO, aquilo está ERRADO, fim de papo.

Juntando-se a esse quadro um dos mais clássicos mal-entendidos da lusofonia, a trama se adensa. “Ah, os portugueses não usam o gerúndio” é uma ideia falsa. Essa forma nominal do verbo tem emprego firme em certas regiões de Portugal.

Ainda que fosse verdadeira, supor que a “brasilidade” rebaixaria de alguma forma o gerúndio é pura vira-latice. “A dizer” não tem nada de intrinsecamente superior a “dizendo”. Na verdade, poderia até ser visto como um uso bárbaro por um conservador radical que tomasse o português camoniano como padrão-ouro do idioma.

Com seus “reis que foram dilatando a fé, o Império, e as terras viciosas de África e de Ásia andaram devastando”, tirem o gerúndio de Camões e verão Os Lusíadas se desfazendo em milhares de caquinhos.

(*) Sérgio Rodrigues é escritor e jornalista. O artigo reproduzido foi publicado originalmente na Folha de São Paulo.

“Risco de morte”

Sérgio Rodrigues (*)

Boa notícia no mundo da língua brasileira: a expressão biônica “risco de morte”, que há cerca de 20 anos começou a se impor às cotoveladas no discurso dos meios de comunicação, sofreu um violento revés. Talvez não corra risco de vida, mas está no hospital.

Na última quinta-feira (9), depois que publiquei aqui um texto sobre os “podólatras da letra”, a direção de jornalismo da TV Globo soltou uma circular vetando em toda a rede o uso da locução, que chamou acertadamente de “modismo”.

Eu sei que isso não vai resolver os problemas do Brasil. A notícia é boa para a cultura do país porque representa uma vitória da língua natural, aquela que as pessoas de fato falam, e uma derrota de certa mentalidade prescritiva que, mesmo bem intencionada, comete o pecado de inventar “erros” onde eles não existem.

Dança dos mortos
Estampa da nota de 1000 francos suíços que circulou de 1954 a 1974

Basta pensar na reputação que o português tem para grande parte dos estudantes e da população em geral –a de língua dificílima e cheia de pegadinhas– para entender o potencial nocivo da caça ao equívoco imaginário. “Seus tataravós falavam errado, seus bisavós e avós e pais também, preste atenção!”

Por ser emblemática, a história de “risco de morte” merece uma recapitulação. É preciso deixar claro que o problema da expressão não é estar “errada”. Seu problema é que, de uso minoritário ate então, foi vendida a multidões de falantes ao preço da criminalização de uma locução consagrada, familiar e tão popular quanto elegante.

Foi em fins do século passado que estudiosos apegados demais ao pé da letra transformaram a malhação de “risco de vida” –que até Machado de Assis usou– em cavalo de batalha. O jornalismo brasileiro, infelizmente, montou nele e saiu a galope.

A Globo não inventou o modismo, embora possa ser considerada sua maior propagadora. Introduzida na cultura da grande imprensa por consultores de português, a ideia de que “risco de vida” era um contrassenso chegou a ser acolhida também nesta Folha – que, no entanto, livrou-se dela faz tempo.

“Ninguém corre o risco de viver”, dizia-se. Era um equívoco. A análise em que se baseava obscurecia algo compreendido até então por todos os falantes, inclusive os analfabetos: que risco de vida quer dizer risco para a vida, isto é, risco de perder a vida.

Enxergar aí uma agressão à lógica requer um tipo bem carrancudo de literalismo. É mais ou menos como dizer que o “quarto de visitas” deveria ser chamado de “quarto para visitas”, uma vez que elas nunca terão a posse do cômodo.

A primeira voz que vi se levantar contra isso, no início do século, foi a do linguista Sírio Possenti. No campo conservador, o jornalista Marcos de Castro incluiu um verbete em reedição de seu livro A imprensa e o caos na ortografia para engrossar o coro. A resistência a “risco de morte” foi uma obra coletiva.

Não que a locução mereça o anátema que seus defensores tentaram impor a “risco de vida”. As duas são gramaticais e fazem sentido. Uma, preferida por gerações de brasileiros, refere-se ao perigo que corre a vida; a outra fala do perigo de que a morte vença. Dizem basicamente a mesma coisa.

Por que, então, comemorar o declínio da expressão “risco de morte”? Porque ela não soube brincar. A língua que as pessoas falam na vida real merece respeito.

(*) Sérgio Rodrigues é escritor e jornalista. O artigo reproduzido foi publicado originalmente na Folha de São Paulo.