Caixa 2 e outros bichos

José Horta Manzano

Todos os países têm seus jeitinhos, suas malandragens, suas falcatruas. Todos são constituídos por seres humanos, falíveis e frequentemente venais.

O que faz, então, a diferença entre um país mais evoluído e um outro, mais atrasado? Não é fácil dar assim, de supetão, a resposta definitiva. Todo um feixe de condições tem de ser respeitado para garantir que um país seja considerado desenvolvido.

Uma delas é a universalidade da lei. O fato de certos cidadãos serem considerados acima do bem e do mal é típico de sociedades atrasadas. Todos se lembram do pronunciamento em que o Lula, presidente do país àquela época, declarou que José Sarney merecia tratamento diferenciado por «não ser uma pessoa qualquer».

Abusando da ingenuidade que só a ignorância lhe concede, o então presidente não se deu conta da enormidade que estava a proferir. Respeito merecemos todos, desde os amigos do rei até o mais humilde dos cidadãos. E nenhum de nós deveria ter direito a desfrutar favores negados a outros cidadãos.

Nossa república dá (muitos) outros sinais de atraso, mas hoje vamos nos ater a este: a igualdade dos cidadãos perante a lei.

Uma categoria de cidadãos constitui, realmente, um grupo especial. É de lei. São os eleitos do povo: presidente, governadores, deputados, senadores. Enquanto dure seu mandato ― repito: enquanto dure o mandato ―, a imunidade os protege. Se assim não fosse, não fariam outra coisa senão depor nos tribunais.

Para resguardá-los de uma enxurrada de processos, a lei garante imunidade a uma categoria de eleitos, enquanto dure seu mandato. Essa prática, difundida na maioria dos países, visa a não entravar os governantes.

O que marca a diferença entre as democracias evoluídas e o resto é o que acontece depois que o eleito cumpre seu mandato e dá adeus à imunidade. Em princípio, volta a ser um cidadão comum, sujeito a ventos, tempestades e a processos também.

Liliane Bettencourt

Liliane Bettencourt

O ex-presidente da França, Nicolas Sarkozy, acaba de ser indiciado num processo. É acusado de ter recebido ajuda monetária de Madame Bettancourt para reforçar sua campanha presidencial, em 2007. Só para ilustrar o assunto, conto-lhes que a senhora Bettancourt, dona de 15 bilhões de euros, é a mulher mais rica da França, acionária majoritária da multinacional gigante L’Oréal.

A não ser que instâncias superiores decidam anular o indiciamento, o que é pouco provável, o ex-presidente terá de enfrentar os tribunais. Como beneficiário evidente do caixa 2, terá de responder pelo malfeito.

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Nas nossas aprazíveis terras tropicais não é bem assim que funciona. Que o caso chamado mensalão tenha sido levado adiante já foi um espanto. Que tenha sido julgado pelo STF, então, foi de causar estupefação. Foi a exceção que confirma a regra.

Nosso antigo presidente, mesmo destituído da blindagem que a imunidade lhe concedia, foi o beneficiário maior do financiamento ilícito (= caixa 2) e da compra de apoio parlamentar (=mensalão). Apesar disso, não foi importunado. Continua livre, leve e solto.

Decididamente, não é um cidadão comum. Pertence a uma casta a cujos privilégios nós outros, meros plebeus, não teremos jamais acesso.