Se eu morrer, saibam quem me matou

Ignacio de Loyola Brandão (*)

Esta é a crônica mais delirante e real que escrevi nestes meus 27 anos neste jornal. Se eu morrer de covid-19, saibam que fui assassinado. Sei que posso ser morto apesar dos cuidados que tomo. Estou há 50 dias encerrado em casa. Não desço sequer para atender motoboys que trazem medicamentos, compras de supermercados ou refeições. Gastei hectolitros de álcool gel, cheguei ao máximo de, após receber uma ligação, dar um banho no telefone com medo de ser contaminado pelo som. Quando vejo noticiário, desligo se o presidente começa a falar, enraivecido, espalhando perdigotos, tossindo, espirrando, dando a mão, insensível, abusado.

Tenho medo de ser infectado. Aqueles olhos claros que poderiam ser amorosos e cordiais nos fuzilam com chispas de ódio. Como deve sofrer quem vive assim na defensiva. Porque ele é pura defensiva o tempo todo. Segundo os sábios, não podemos olhar nos olhos de uma pessoa que odeia tudo, o mundo, a vida, porque podemos trazer para dentro de nós o que ela tem de maligno. Há o perigo de nos tornarmos como ela, malvada, perversa. Dona Ursulina, senhora sábia, que cozinhava como poucos, avó de um primo querido, diante de gente ruim costumava dizer: “Isso não é gente, isso é o demônio”. E esse presidente se diz religioso, vai a cultos, agrada a fiéis, bispos, pastores, o que for. Quem ele quer enganar?

(*) Ignacio de Loyola Brandão é escritor e membro da Academia Brasileira de Letras. O texto é fragmento de artigo publicado em 22 maio 2020.

Eleições na França

José Horta Manzano

Você sabia?

Em matéria eleitoral, o mundo político francês está vivendo momento de embaraço. As eleições municipais, que ocorrem a cada 6 anos para escolher vereadores e prefeitos, estavam marcadas para o domingo que passou. Uma semana antes, como o coronavírus já se alastrava pelo país, levantou-se um vozerio sobre a manutenção ou anulação do pleito. De fato, ficava esquisito o governo central determinar que todos evitassem sair de casa e, ao mesmo tempo, encorajá-los a ir votar.

Um comitê de crise foi criado às pressas no mais alto nível. Após se aconselharem com médicos, técnicos, especialistas e todos os que entendem do assunto, decidiram manter a eleição. Mas com algumas condições.

1) Cada eleitor deveria trazer a própria caneta pra assinar a folha de presença;

2) Nas filas de espera, deveria ser respeitada distância de 1 metro entre votantes;

3) Os maiores de 70 anos teriam prioridade;

4) Frascos de álcool gel estariam à disposição para uso de todos.

E assim foi. A votação correu bem, apesar da abstenção recorde de mais de metade do colégio eleitoral. Dos 35 mil prefeitos, 30 mil foram eleitos no primeiro turno – geralmente em municípios pequenos. Para os 5 mil restantes, os eleitores deveriam voltar às urnas no domingo seguinte.

Acontece que, em poucos dias, a propagação da doença foi geométrica. Todos perderam a coragem de enfrentar fila e puxar uma cortininha que dezenas de mãos já haviam puxado. (Na França, não se vota em traquitana eletrônica, mas com tradicionais cédulas de bom papel; daí a cortininha.)

Que fazer? De novo, reuniu-se o comitê de crise. As consultações apuraram que os chefes de todos os partidos estavam de acordo de adiar o segundo turno. A situação era inédita, coisa nunca vista. E como é que fica quem foi eleito no primeiro turno? Anula-se a eleição? A decisão foi salomônica. Os eleitos no primeiro turno têm a vitória garantida. Os demais terão esperar três meses. A nova votação se fará dia 21 de junho – ou mais tarde, dependendo do estado de contaminação do país.

Está armada uma baita confusão. Nos municípios em que o novo prefeito já foi definido, a cerimônia de tomada de posse pode ser, em princípio, programada. Terá de ser virtual, sem público, para evitar alastramento do vírus. Quanto às demais localidades, mandato de prefeito e vereadores terá de ser prolongado por decreto excepcional.

«Aux grands maux, les grands remèdes – a grandes males, grandes remédios».