As malandragens de lá e as de cá

José Horta Manzano

Em todo país civilizado, leis votadas pelo parlamento têm de ser sancionadas pelo chefe do Estado. Em muitos países, o Estado é chefiado por um presidente. No reino da Bélgica, o rei é o chefe do Estado. Uma nova lei só passa a valer depois de assinada por ele.

Em 1990, por lá reinava o mui católico Balduino I, fervoroso praticante de sua religião. O parlamento do país, após anos de debates, acabava de aprovar uma lei autorizando o aborto sob certas condições.

Rei Balduíno da Bélgica

Rei Balduíno da Bélgica

O rei, diametralmente oposto a essa resolução, recusou-se a sancionar o texto e pediu ao Primeiro-Ministro que encontrasse uma saída legal para o impasse. Uma solução que conciliasse as convicções íntimas do soberano com o anseio dos cidadãos.

O jeito foi recorrer a um artigo constitucional raramente invocado. O Conselho de Ministros constatou que o rei se encontrava na impossibilidade de exercer suas funções. Seus poderes foram então transferidos ao Primeiro-Ministro, que sancionou a lei controversa. Pouco tempo depois, o rei foi declarado apto a reinar. E voltou ao trono.

Há quem discuta até hoje se o recurso a esse subterfúgio foi realmente legal. No fundo, no fundo, não foi. O espírito do legislador ao incluir aquele artigo na Constituição do país tinha em mira um eventual afastamento físico do rei ― uma longa viagem, por exemplo ―, ou um caso de doença.

Seja como for, o rei mostrou ser um homem de convicções, um espírito reto. Embora apegado a princípios um tanto démodés, Balduíno era homem de elevada estatura moral.

Esse episódio, longe de causar celeuma, rendeu-lhe admiração e respeito. Sua popularidade cresceu vertiginosamente entre os súditos.

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Um acontecimento que lembra o caso de Balduíno teve lugar estes dias no Brasil. Nestes tempos estranhos em que estádios passam a chamar-se arenas, o caso passou praticamente despercebido.

Assim mesmo, jornais têm falado de um obscuro senhor Afif, homem político que, no limite da legalidade, carrega dois chapéus. Sem a menor cerimônia, apresenta-se como vice-governador do Estado de São Paulo ou como 39° Ministro da República, ao sabor das circunstâncias.

Com o coração empedrado pelos contínuos escândalos que têm sacudido a República estes últimos 10 anos, os brasileiros não deram muita atenção ao fato. Perto de tantas revelações mais escabrosas, essa duplicidade de funções concentradas num só indivíduo não é de fazer corar ninguém.

Dilma Rousseff e Afif Domingos

Dilma Rousseff e Afif Domingos

Mas a lei não autoriza essa farra. Nosso amigo terá de escolher, mais dia, menos dia, se usa este boné ou aquele. Não será possível continuar muito tempo cavalgando duas montarias.

Edificante reportagem do Estadão de 8 de junho nos informa que o senhor Afif agiu como o rei Balduíno. Surpreendido pela perspectiva de uma repentina ausência do governador, que se preparava para uma viagem ao exterior, tinha de assumir suas funções de vice. Mas só poderia fazê-lo se renunciasse ao cargo de ministro. Que fazer?

Uma saída à belga foi encontrada. Publicou-se às pressas uma edição extra do Diário Oficial ― à custa do contribuinte, evidentemente ― para anunciar a demissão do ministro. Isso abriu-lhe o caminho para assumir o posto de vice.

É verdade que lembra o caso de Balduíno. Mas, convenhamos, a motivação do senhor Afif é ― sejamos comedidos ― menos nobre.