Quem matou Odete Roitman?

José Horta Manzano

Em 1988, de férias no Brasil, devo ter assistido a algum capítulo da novela Vale Tudo (edição original). Me lembro da forte atração que o folhetim exercia sobre a população. Ninguém falava mais de Plano Cruzado, caçar boi gordo no pasto, ser fiscal do Sarney, essas fixações da época. A empolgação provocada pela novela abafava todo o resto.

Espertos, os autores faziam circular as notícias antes que acontecessem na tela, que era pra dar um spoiler chamativo. De antemão, o Brasil inteiro sabia que a protagonista ia ser assassinada com três tiros em tal capítulo. Apesar disso (ou talvez por isso mesmo), ninguém perdia o tal capítulo. O mesmo estratagema funcionava para desvendar o nome do homicida. O país parou para saber quem tinha sido.

E olhe que os tempos eram difíceis. O ano de 1988 registrou 1.000% de inflação (mil por cento!), valor inimaginável nos dias de hoje. O cidadão que não tivesse grandes posses pererecava para chegar ao fim do mês. Os preços aumentavam diariamente. Salários eram reajustados todos os meses. Lá pelo dia 20, ainda ninguém sabia quanto ia receber no contracheque. Era um verdadeiro sufoco.

Logo, uma novela que tenha impactado a ponto de fazer parar o país era… de se tirar o chapéu. É verdade que, num tempo pré-diluviano em que internet ainda não existia, os divertimentos se resumiam ao domingo no parque e à novela diária.

Quase quarenta anos se passaram. Na política, o Brasil levou uns trancos feios, mas o que mudou mesmo, de lá pra cá, foi a popularização da internet, com telefones celulares e redes sociais. O panorama hoje é bem diferente.

Longe do Brasil, eu imaginava que não fosse mais possível uma novela se tornar popular a ponto de sobrepor-se a assuntos bem mais sérios. E não é que uma Vale Tudo requentada tem provocado os mesmos efeitos da dos anos 1980? Fiquei pasmo. Agora, que o folhetim se aproxima do fim e que a heroína já levou seus três tiros, estão todos em efervescência querendo saber quem é o homicida. Os autores prometem escolher um outro assassino, nem que seja pra variar um pouco e pra manter o suspense.

Soube de um pároco que repreendeu energicamente um fiel que, impregnado da dor que lhe oprimia o coração, pediu ao sacerdote que rezasse uma missa pela alma da defunta Odete. Não sei se a reação do padre foi adequada. Diante de um cristão que navega entre o mundo real e a fantasia, trazê-lo bruscamente à realidade é como revelar a uma criança de 4 anos que Papai Noel não existe. Me parece um ato de violência gratuita.

Soube também que investigadores e delegados de polícia se reuniram numa espécie de competição visando a considerar comos e porquês e, ao final, designar o mais provável assassino. Uma loucura!

E eu que imaginava o brasileiro atual distante desse fervor arcaico. Pensava que a realidade propagada por influenciadores que vendem dicas para maquiagem tivesse curto-circuitado o antigo gosto do brasileiro por peças de ficção. Imaginei que a insistência de discurseiros que debitam loas a este ou àquele político tivesse afastado o público de seu antigo compromisso com a novela das nove.

Aliviado, constato que, apesar das enormes mudanças, no fundo, tudo continua igual. Talvez a diferença maior (e que pouco se nota) é que assistíamos ao folhetim de 1988 dentro de casa, olhos fixos numa telinha de 21 polegadas, janelas abertas para a rua. Já à edição 2025, assistimos sempre em casa, numa telona de 65 polegadas(!), mas com portas e janelas bem trancadas. Vosmecê sabe por quê.