Desculpe o transtorno. Estou em reforma.

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Não dava mais para adiar uma reforma radical do meu edifício psíquico. O ar de decadência já havia tomado conta de tudo e deixado claro que não adiantaria reestilizar o ambiente. Era preciso derrubar todas as paredes e recomeçar do zero.

Conserto 2Bem que eu tentei continuar convivendo com as velhas estruturas que ainda estavam de pé dentro de mim, mas a verdade inescapável era que minha vida anímica tinha perdido muito de sua funcionalidade. Eu já tinha improvisado alguns remendos de caráter, redecorado ítens de personalidade, feito um puxadinho emocional para acomodar meu desconforto de lidar com tarefas rotineiras. Tinha construído mais um andar para servir de depósito para todos aqueles projetos que eu ia empilhando para quando chegasse o dia certo de realizar. Não adiantou.

Eram tantas divisórias que eu já não podia mais circular livremente. Havia também espaços emocionais que estavam vazios ou subutilizados. O espaço da família, por exemplo, que era gigantesco e imponente, foi se apequenando com o tempo e hoje as visitas são raras. O espaço dos amigos, antigamente o mais frequentado da casa, estava sempre cheio de risos, música e ruído de conversas. Aos poucos, as risadas foram perdendo colorido, a música tornou-se inaudível de tão baixa para não atrapalhar as conversas e estas foram sutilmente se transformando em troca de comentários ocasionais. Depois, os amigos foram rareando e o espaço acabou sendo convertido em balcão de recepção de mensagens eletrônicas, curiosas talvez, mas sem substância para alimentar a alma.

Limpeza 1A cozinha deixou de ser espaço de experimentação. Meus alimentos preferidos, os livros e os discos, foram sendo deixados de lado em função da dificuldade em mastigar e absorver os nutrientes de tantas novas informações. O cardápio repetitivo e a execução burocrática terminaram afugentando convivas em potencial e eu mesma fui ficando cada vez mais inapetente.

O quarto de despejo estava lotado até o teto de raivas impotentes, ressentimentos, mágoas e fantasias de grandeza que eu bordava no passado e nunca tive ocasião de usar. A área dos medos tinha se avolumado e invadido os cantinhos ao redor. Eram muitos: o medo da morte, da velhice, da solidão e, o maior deles, o medo da própria vida. Já não dava mais para abrir as janelas e arejar o ambiente. O odor nauseante de mofo espalhou-se por todo o meu ambiente anímico, trazendo irritação, mau humor e desesperança.

Foi só quando o atravancamento e a sensação de sufocamento atingiram o ponto máximo que a ideia de uma reforma libertadora começou a se delinear. O atulhamento era tão grande que eu inconscientemente havia optado por me encolher, prendendo o diafragma e tentando expandir o mínimo possível os pulmões para não detonar uma avalanche emocional. O medo do soterramento era mais forte do que meu desejo de abrir os braços, esticar o peito, endireitar a postura e reivindicar meu direito a uma cota satisfatória de oxigênio.

Loft 1Vislumbrei o projeto arquitetônico da reforma no exato instante em que o esforço para respirar provocou o destravamento do diafragma. A energia vital recomeçou a circular e meu corpo psíquico começou a vibrar novamente. Resolvi transformar o apartamento numa espécie de loft onde a ausência de barreiras permitiria que tudo pudesse se comunicar com tudo: o espaço dos amigos integrado ao espaço dos ideais de vida, o espaço da vida diretamente conectado ao espaço da arte. A nova cozinha, integrada à sala, vai se transformar na alma da casa. Vou testar novos ingredientes pessoais e uma receita nova de relação a cada dia.

Conserto 1Para restabelecer a funcionalidade do ambiente, todos os medos terão de ser desalojados. Vou doar todas as fantasias irrealizadas para uma instituição de caridade que atenda crianças e jovens. Eles saberão o que fazer com elas e, se julgarem que alguma não tem mais serventia, poderão se desfazer dela com o desapego que eu não pude ter.

Também não haverá mais divisão entre espaços de serviço e espaços sociais. Todos que frequentarem uns estarão autorizados a usufruir dos outros. A inexistência de regras de coexistência e convivência certamente vai devolver todo o dinamismo que me fazia tanta falta. Estou apostando alto na transmutação de todo conhecimento em sabedoria.

Janela 1Do passado, só mantive um estratagema: continuo não querendo que a tecnologia ocupe o lugar do humano no meu psiquismo. Nada de aplicativos de celular para controlar as funções da casa e nada químico para incrementar a sensação de potência orgânica. A natureza vegetal e a natureza humana continuarão sendo meus mais fortes aliados.

Você está convidado a conhecer meus novos recintos anímicos. Vamos organizar uma comilança para celebrar os novos tempos. Traga consigo suas esperanças, sua leveza de alma e sua disposição para o diálogo. As portas estarão sempre abertas para pessoas como você.

Interligne 18h

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

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