As travessuras de um Boeing

José Horta Manzano

Você sabia?

Você sabe onde fica Iqaluit? Eu também não sabia até alguns dias atrás. Um pouquinho de paciência: você também vai ficar sabendo já já.

Era uma hora da tarde no aeroporto de Zurique. Naquele 1° de fevereiro, instalados dentro de um moderno Boeing 777 da companhia aérea Swiss, os 300 passageiros embarcados no voo LX-40 já sonhavam com as palmeiras de Los Angeles. Iam deixar pra trás as neves alpinas e, ao cabo de 11 horas de voo, gozar as delícias do inverno ameno da Califórnia.

Rota regular Zurique-Los Angeles

Rota regular Zurique-Los Angeles  –  Imagem Flightradar  –  clique para aumentar

O avião levantou voo com meia hora de atraso. Em viagens longas, isso não costuma ser problema: em geral, a demora é compensada e acaba-se pousando na hora certa. Se não for um pouco antes.

A bordo, tudo corria bem. Depois do almoço, já pela metade da viagem, passageiros cochilavam. Eis senão quando… os alto-falantes trazem a voz grave do piloto. «Senhoras e Senhores, em virtude de um problema numa das turbinas, faremos uma escala técnica em Iqaluit. Não se preocupem, o pouso não representa risco. Repartiremos assim que o problema for resolvido.»

Rota do voo LX-40 de 1° fev° 2017

Rota do voo LX-40 de 1° fev° 2017  –  Imagem Flightradar  –  clique para aumentar

Para não alarmar os passageiros, o piloto preferiu omitir detalhes inquietantes. Na realidade, uma das turbinas (são duas) tinha parado de funcionar. E olhe que o avião era novinho, com apenas oito meses de uso. Fosse um eletrodoméstico, o proprietário ainda teria direito a devolução.

O protocolo internacional é rigoroso: quando um dos motores pára, não é permitido seguir viagem. O piloto tem de pousar no aeroporto mais próximo. Acontece que estavam sobrevoando o Oceano Ártico, a uma latitude de 70 graus, não longe do Polo Norte. O primeiro aeroporto, pouco mais que um campo de pouso, era o Aeródromo de Iqaluit, perdido na tundra do norte canadense. O vilarejo é habitado por sete mil esquimós.

Aparelho 777 da Swiss pousando em Iqaluit

Aparelho 777 da Swiss pousando em Iqaluit  –  clique para aumentar

Sem outra opção, o jato pousou. Em redor, tudo branco de neve. O termômetro marcando 25 graus abaixo de zero. E agora, que fazer? Era impossível consertar a turbina ‒ o vilarejo não dispunha de peças nem de pessoal habilitado. Mais difícil seria ainda alojar os 300 viajantes por absoluta falta de hotel. Sobrou uma única opção: mandar vir novo avião para resgatar os passageiros. Nova turbina tinha também de ser encomendada para substituir a que tinha parado de funcionar.

Um aparelho veio de Nova York para levar as pessoas. Só chegou depois de 11 horas de espera. Enquanto isso, tripulação e passageiros continuaram sentados. Pelo menos, o aquecimento funcionava. Assim que chegou o avião de resgate, foram transferidos e puderam levantar voo e seguir viagem.

Cargueiro Antonov pousando em Iqaluit - clique para aumentar

Cargueiro Antonov pousando em Iqaluitclique para aumentar

Quanto à turbina, foi mais complicado. Tinha de ser trocada, senão o avião não ia poder sair de lá. Como levar uma peça de 8,3 toneladas até a tundra canadense? Foi preciso contratar um gigantesco avião de transporte Antonov semelhante àquele que visitou Viracopos algumas semanas atrás. Ele veio com turbina e técnicos. Faltava resolver o último problema. A retirada do motor enguiçado e a instalação do novo leva horas e horas, trabalho delicado e difícil de executar quando a temperatura do ar teima em permanecer entre –20° e –30°. O jeito foi construir uma espécie de tenda gigantesca, aquecida por dentro, para abrigar o pessoal técnico.

Depois de oito dias angustiosos, a turbina nova foi instalada e a antiga foi carregada no Antonov. O Boeing vazio voltou a Zurique. Depois de uma revisão e uma boa limpeza, já está quase pronto pra voar de novo. Quanto ao Antonov, levou a turbina defeituosa ao fabricante.

Swiss recusa-se a informar o custo total da desaventura. Especialistas estimam que a brincadeira não tenha saído por menos de um milhão. De dólares, francos ou euros ‒ é praticamente a mesma coisa.

Aceita um sorvete geladinho? Não sei se têm da marca Eskimó.

Gol contra

José Horta Manzano

Tenho um amigo que viaja ao Brasil agora em janeiro. Como de costume, comprou sua passagem de avião por internet, no site da Swiss Air Lines. Hoje em dia é tudo tão prático, não? Você chega, se identifica, e logo aparece um hello ou um bonjour do outro lado. Você se sente em casa. Faz sua reserva, paga com seu cartão, e na hora já lhe mandam o bilhete por email. Se quiser, pode até marcar o lugar, escolher o tipo de refeição. Uma simplicidade.

Meu amigo quis comprar também uma passagem doméstica, de São Paulo para o interior, ida simples. A localidade de destino é servida por uma companhia chamada Gol (sic). Ele imaginou que fosse uma manipulação simples. Não foi. Ontem tentou, pelejou, não conseguiu. Pediu minha ajuda.Gol

Hoje resolvi dar-lhe uma mão. Imaginei fosse questão de poucos minutos. Engano meu. Obediente, li as instruções e segui tudo ao pé da letra. Nada feito. Só consegui obter mensagens de que havia um erro aqui, outro ali, que não havia sido possível, que tentasse de novo, que o login não havia sido reconhecido, enfim, um monte de baboseiras.

De repente, vejo um botão que me pareceu interessante: clicando ali, você pode conversar diretamente com um atendente ― por escrito, naturalmente ―, como numa sala de bate-papo. Tentei essa opção. Funcionou.

Do outro lado da linha, estava um rapaz muito bem educado, daqueles que transpiram boa vontade e gostam do que estão fazendo, sempre prontos a ajudar. Juntos, tentamos tudo o que se possa imaginar para comprar a passagem: como se o passageiro fosse residente no estrangeiro, como se residisse no Brasil, pagando com cartão Visa, pagando com Mastercard, entrando no site com cadastro, entrando pela porta dos fundos (sem cadastro). Todas as vias foram exploradas, mas nada adiantou.Nenhum cartão foi aceito, todos rejeitados. Impossível comprar a passagem.

O atendimento via sala de bate-papo durou das 11h26 às 13h56, exatamente uma hora e meia. Tempo perdido para o atendente e para nós aqui. Fomos derrotados por um sistema malfeito, um esquema pensado para o pão nosso de cada dia, mas despreparado para qualquer coisa que saia do ramerrão quotidiano. Um cartão emitido no exterior está, aparentemente, fora dos parâmetros. Não há meio de fazer que o sistema o reconheça.

Fico pensando na Copa do Mundo que o Brasil hospedará dentro de um ano e meio. Imagino os apuros em que vão se meter os turistas que pretenderem se deslocar de avião no interior do País. Se nós, que somos de lá, que conhecemos a língua, que temos condições de manter uma hora e meia de bate-papo online não conseguimos comprar uma simples passagem de avião, imagine a frustração programada para os temerários visitantes de 2014.

Uma coisa é «conseguir trazer a Copa para o Brasil», como alardearam os autores do feito magistral, como se isso fosse a apoteose, o objetivo final. Outra coisa, bem diferente e bem mais complexa, é preparar o Brasil para receber a Copa. Para isso, não basta desejar ardentemente, há que trabalhar.

Infelizmente, estamos ainda engatinhando. O Brasil, como destino turístico, ainda está ensaiando, hesitante, seus primeiros passos. Os resultados não vão surgir assim, de um momento para o outro. Pelo andar da carruagem, ainda vai demorar décadas.

Advertência aos incautos: se você tiver de utilizar uma companhia chamada Gol (sic), tome cuidado. Pode ser bola fora ou, o que é pior, gol contra.