A canoa virou

José Horta Manzano

Dois mil anos atrás, os romanos já haviam pensado em conjugar duas tecnologias de navegação. As embarcações, ancestrais de nossos atuais carros «flex» ou «bi flex», podiam ser propulsadas de duas maneiras. Quando havia vento, desfraldavam-se as velas. Quando reinava a calmaria ‒ ou também em caso de vento desfavorável ‒ um batalhão de escravos punha-se a remar freneticamente. Para aumentar a velocidade, as duas modalidades de propulsão podiam ser postas a funcionar conjuntamente.

navio-3O número elevado de tripulantes tinha seu custo. Alojar e alimentar toda aquela tropa demandava recursos. Por seu lado, a multidão era útil em caso de a nave, por algum problema de vedação, fazer água. Cada um com seu balde, os marinheiros impediam o barco de ir ao fundo.

O problema maior não vinha, portanto, de defeito de fabricação. O perigo grande era a embarcação de madeira chocar-se contra escolhos. Aí, não havia balde que resolvesse. Quando a madeira batia com força em pedra, não havia como escapar: o barco se quebrava, se partia em dois e afundava.

Está aí a origem da palavra latina naufragium, que corresponde a nosso naufrágio. É evolução de navifragium, de navis (barco) e fragium (da raiz frangere). Frangere, que significa justamente partir ou quebrar, deu vários filhotes em nossa língua: fratura, fragmento, frágil, sufrágio. E, naturalmente, naufrágio.

No naufrágio romano, a nave ia necessariamente ao fundo. Quebrada, não tinha como escapar a seu triste destino. Dois mil anos mais tarde, embarcações continuam naufragando, ainda que nem sempre se partam ao meio.

Chamada do Estadão, 30 out° 2016

Chamada do Estadão, 30 out° 2016

Um barco fretado pela Justiça Eleitoral sofreu um acidente no norte do país. A mídia publicou a impressionante imagem da embarcação sinistrada. Disseram que o barco afundou. Erraram. Como o nome indica, afundar é ir ao fundo. Não foi o que aconteceu.

Vamos ressuscitar palavras pouco usadas? Se são úteis e dão bom recado, por que não? Para descrever a cena do acidente, o jornalista teria sido mais feliz se tivesse dito que o barco virou ou que se deitou. Podia também valer-se do verbo tombar. Para ser mais explícito, o jornalista poderia até ter dito que o barco encalhou e tombou. Outra opção teria sido a palavra adernar.

Tem mais uma: soçobrar(*). Diga-se, a bem da verdade, que soçobrar significa virar de ponta-cabeça, que não foi exatamente o que aconteceu com nossa embarcação. Seja como for, não convém anunciar que afundou. Não afundou.

Interligne 18cNota etimológica
Soçobrar vem do catalão sotsobrar. Lá pelas bandas de Barcelona, para dizer que algo está de cabeça pra baixo, dizem sotsobre ‒ literalmente «sob-sobre». O italiano se vale da mesma imagem: sottosopra.