De quem é a Crimeia?

José Horta Manzano

Acabo de assistir à coletiva de imprensa que Lula e Pedro Sánchez, o chefe do governo espanhol, deram na saída de uma conversa a portas fechadas. Em virtude do pouco tempo disponível, só foram permitidas duas perguntas, uma de uma jornalista brasileira e uma de um jornalista espanhol.

Ambas as perguntas foram múltiplas, com três ou quatro subperguntas embutidas, mas o tema principal das duas foi o mesmo: a guerra na Ucrânia. Está confirmado que as declarações contraditórias que nosso presidente tem dado nos últimos tempos retumbaram na Europa.

Uma das perguntas deixou Lula em saia apertadíssima. À queima-roupa ouviu: “Na sua opinião, presidente, a Crimeia e o Donbas pertencem a que país?”. Luiz Inácio engasgou. Disse que não tinha entendido a pergunta. O repórter repetiu pausadamente. O presidente do Brasil continuou reclamando que não havia entendido.

O chefe do governo espanhol se meteu na conversa, e Lula teve de entregar os pontos. Admitiu que tinha entendido. Mas logo se esquivou alegando que não cabia a ele responder a essa pergunta. Não lhe compete decidir quem é o dono da Crimeia e do Donbas. Espichou um pouco mais o raciocínio, mas acabou mudando de assunto.

Lula está gravemente enganado. Sua resposta está longe da realidade. Ao escapar por essa portinha estreita, ele mostrou que seus conhecimentos não lhe permitem meter-se em política internacional sem dar vexame.

Só para recordar, a Ucrânia era uma república integrante da União Soviética. Com o desmonte da URSS, o país tornou-se independente em 1991. Em dezembro daquele ano, o Brasil reconheceu a Ucrânia como país independente dentro de fronteiras soberanas e universalmente reconhecidas. O território incluía a Crimeia e a bacia do Rio Don, o Donbas. O próprio Lula visitou Kiev em 2009, como presidente do Brasil, quando o país estava inteiro e ninguém discutia a propriedade do território.

O fato de a Rússia ter invadido a Crimeia em 2014 e parte do Donbas em 2022 não altera o tabuleiro: essas duas regiões continuam fazendo parte integrante da Ucrânia. Portanto, a resposta que se esperava de Luiz Inácio era que, até que eventual novo tratado modificando fronteiras internacionais venha a ser assinado e reconhecido pelo mundo todo, o território ucraniano inclui, sim, a Crimeia e o Donbas.

Se um líder estrangeiro, indagado sobre quem é o dono do Acre, desse uma resposta à la Lula – “não cabe a mim decidir a que país pertence o Acre” –, causaria fúria em Brasília e indignação no resto do mundo. E com razão, pois não?

Escapar à pergunta, como fez Lula da Silva, é levar água ao moinho de Putin. Somente o ditador da Rússia põe em dúvida o que ficou acertado e sacramentado 30 anos atrás. Lula mostra que continua mal preparado para enfrentar as consequências de suas falas desastradas.

Que se prepare para as próximas vezes, que virão certamente.

Donbas ou Donbass?

Donbas / Donbass

José Horta Manzano

Com a estúpida guerra que se instalou em território ucraniano, a palavra está no noticiário diário. A mídia brasileira hesita entre as duas formas Donbas e Donbass – com um S final e com dois. Qual é a grafia correta?

Pra começar, vamos ver qual é o significado do termo. O Rio Donets(1) é um curso d’água de certa importância. Nasce em território russo, entra na Ucrânia, irriga mais de 700km de terras desse país, em seguida volta a terras russas para desaguar no Rio Don. No total, o Donets percorre mais de 1000 quilômetros.

Desde o fim do século 19, a bacia do Rio Donets é conhecida pela abundância de minas de carvão natural. A conjunção de um curso d’água importante e da presença de carvão deu origem à siderurgia e à indústria pesada que se estabeleceram na região. É uma das razões pelas quais a Rússia faz o que pode para anexar essa província a seu território.

A palavra bacinus tinha, no latim medieval, numerosas variantes: baccinus, bassinus, bachinon e até bacca. Em espanhol, o étimo caiu em desuso, mas permanece vivo no italiano bacino, no português bacia e no francês bassin. Com o significado de “conjunto de terras ligeiramente inclinadas”, como em “bacia amazônica”, o russo e o ucraniano tomaram emprestada a forma francesa bassin, transliterada бассейн (russo) e басейн (ucraniano). Ambas são pronunciadas “basséin”.

A palavra Donbas (Donbass) nada mais é que a contração da expressão Донецкий бассейн (=Donetski bassein, em russo) ou Донецький басейн (=Donetski basein, em ucraniano). Donbas (Donbass) é a Bacia do Rio Donets.

A grafia russa requer dois ss, enquanto a ucraniana se contenta com um só. Dado que a bacia carbonífera se estende pelos dois países, eu diria que ambas as grafias são aceitáveis. Os ucranianos certamente ficarão mais felizes se transliterarmos com um S só – Donbás.(2)

(1) Tanto em russo quanto em ucraniano, o final “ets” indica o diminutivo. Portanto, Donets é “pequeno Don”, em referência ao Rio Don, o mais importante da região. No Brasil, tendo em vista que grande parte dos cursos d’água têm nome indígena, a oposição entre o maior e o menor é indicada pelos termos mirim (pequeno) e guaçu (grande), empréstimos da língua tupi. Em Santa Catarina, por exemplo, temos os Rios Saí Mirim e Saí Guaçu. Em São Paulo, estão os rios Apiaí Mirim e Apiaí Guaçu.

(2) Acentuei o á para indicar que o acento tônico cai na sílaba final. Em ambas as línguas.