O sucesso da atrocidade

José Horta Manzano

Ainda não consegui me despedir do drama que se desenrolou num conjunto de favelas cariocas em 28 de outubro. Notem que, por coincidência, foi no dia de São Judas Tadeu, o padroeiro das causas desesperadas. É o santo a quem os devotos se voltam em momentos de grande aflição. Temo que o mal, de tão grande que é, já esteja fora do alcance do santo, que deveria ter sido invocado anos atrás.

O Rio de Janeiro atual cimentou em duas letrinhas – CV – a expressão de um dos polos do crime na cidade. No outro polo, estão as milícias. Entre os dois, se esgueira a população da cidade, quem de carro blindado, quem sacolejando num trem de subúrbio, todos em permanente estado de alerta.

Os que acompanharam as notícias da última semana (e como se havia de escapar?) sabem hoje um pouco mais sobre o funcionamento das duas facções: a miliciana e a dos entorpecentes.

O problema é que hoje em dia todos se acham especialistas em qualquer assunto e se permitem dar opinião em temas que não conhecem. Isso causa cacofonia inútil. Ao final, ninguém avança, ninguém aprende e a ignorância generalizada fica como dantes. Melhor ouvir quem sabe do que está falando.

Gabriel de Santis Feltran é pesquisador brasileiro, professor, mestre, doutor e pós-doutor das áreas de Ciências Políticas e Ciências Sociais. É escritor, poliglota, palestrante e pesquisador junto a Sciences Po (França), Goldsmiths College (Grã Bretanha), Instituto Humboldt (Alemanha). Há vinte anos estuda o funcionamento das organizações criminosas brasileiras, e tem livros publicados sobre o assunto.

Gabriel Feltran foi entrevistado pela Folha de São Paulo. Cito aqui abaixo um trecho da fala dele.

Não há mais tabu em reivindicar explicitamente, e em linguagem popular, o sucesso fulgurante da atrocidade mais cruel. Governantes e secretários inflamados, unidos em uma espécie de gozo doentio, mostraram-se para as câmeras ao final da operação.

Governadores de outros cinco estados manifestaram imediatamente sua cumplicidade política, acolhida na grande imprensa e na opinião pública dominante como uma organização legítima, que em seguida leva adiante sua proposição legislativa imediata de exceção: garantir na lei o extermínio já praticado, transformando qualquer um que seja qualificado como traficante ou membro do crime organizado em “terrorista”.

Basta essa classificação para que se amplie enormemente o contingente das pessoas expostas ao extermínio sumário, em institucionalidade que protege sua fachada democrática. Assim os “narcopesquisadores”, os “narcojornalistas” e o “narcopresidente” podem igualmente ter o mesmo destino dos “narcoterroristas” mortos na favela.

A turma do “eu prendo e arrebento”, assim como os adeptos do “deixa essa meninada em paz” deveriam parar de falar bobagem, e refletir um pouco sobre o que está por trás das manchetes de jornal e das palavras de ordem das redes.

Entrevista integral (para assinantes da Folha)

4 pensamentos sobre “O sucesso da atrocidade

  1. Deixaram a sucuri crescer e procriar no Brasil todo , enquanto o poder público saqueava de braçadas a nação. Agora nao tem solução. Temos duas nações , uma de mandantes e obedientes ( classe média) , outra de miseráveis subjugados por bandidos.

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  2. Eu já estive no meio acadêmico e sei, mais ou menos, como ele funciona. Foram dois cursos, Arquitetura e Museologia. Li com atenção o currículo acadêmico do autor da análise, Gabriel Feltran, e me passou pela cabeça tudo o que presenciei na Academia. Existem mentes brilhantes no circuito acadêmico, mas existem centenas de pessoas que, de dentro de seus gabinetes refrigerados (ou aquecidos), constroem seus estudos e suas teses, sem terem jamais pisado no local/base que dará alicerce a esse trabalho acadêmico. Muitas vezes, essas análises também estão contaminadas pelas ideologias às quais esses acadêmicos se afiliam.

    Muitas vezes, eles e elas fazem entrevistas com pessoas ligadas ao problema e dali retiram uma visão particular dos mesmos (entrevistados), sem ter o pesquisador vivenciado as peculiaridades daquele meio.

    Tem alguns vídeos bastante didáticos desta questão, apresentados por alguém de dentro do problema, um ex-capitão do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais), da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, Rodrigo Pimentel. Meu modesto ponto de vista é o de que, esse sim, conhece de dentro o problema. Rodrigo diz que dois dias antes da operação nos complexos de favelas da Penha e do Morro do Alemão (ou seja, em 27.10.2025), o traficante Doca havia ordenado uma invasão a uma outra favela (uma tomada de território), onde um morador inocente morreu e uma senhora de 60 anos de idade foi feita refém dentro de sua própria casa, e foi morta pelos bandidos, quando foram encurralados por outros criminosos de uma facção local (dentro de uma comunidade do bairro de Costa Barros, zona Norte do Rio). Somaram-se a esse episódio vários outros, incluindo muita informação e investigação, onde a Polícia Militar monitora as movimentações das facções (seja com o uso de drones, seja com captura de conversas obtidas com a apreensão dos celulares de criminosos presos ou mortos em diversas operações). Sabia-se que, além da invasão mal sucedida em Costa Barros, Doca já planejava outras ações para tomada de territórios.

    O ex-capitão do BOPE revelou que as mortes dos criminosos aconteceram por volta de 05h30-06h30 da manhã, com a Polícia usando drones, rastreando a evacuação dos criminosos armados com fuzis e em deslocamento para a mata. Não temos conhecimento de cidadãos de bem correndo para dentro de uma mata, armados de fuzil, às 05h30 da manhã. O pesquisador Gabriel Feltran considera a ação do Estado um “sucesso da atrocidade”. O que nós sabemos é que, os bandidos que quiseram se entregar às forças do Estado, foram presos. Os demais fizeram uma escolha, enfrentaram as forças do Estado. Quem atirou primeiro? Numa guerra? Quem vai saber?

    Deixo aqui o vídeo onde o Rodrigo Pimentel coloca essas verdades, é bastante educativo:

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  3. Agora, se a sociedade carioca desejar que as facções não sejam combatidas, se essa for a vontade do povão, então que seja feita essa vontade. Que as barricadas continuem, que a extorsão dos criminosos continue. E mais, o crime organizado tem nas drogas pouco mais de 20 por cento do lucro total, o maior lucro atual é o da tomada de território e o pagamento de serviços (conexão de internet, taxas diversas, venda de gás, etc).

    Vivemos dentro de um Estado falido em relação à moralidade? Claro que sim. Mas ainda existe um Estado e ele não pode se esquivar de um preceito legal, ele é o dono e o administrador da cidade.

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  4. Caro comentarista,

    Agradeço pelo continuado interesse e pelos comentários interessantes. Dado que não sou o autor do texto citado neste artigo, não me sinto à vontade para aceitar ou refutar seus argumentos.

    A entrevista dada por Feltran à Folha é longa, e o trechinho que separei talvez não dê a exata ideia da tese dele. Mando-lhe por email o texto integral.

    Meu abraço.

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