Uma cachorra afrodescendente

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Eu preferiria que ela fosse de grande porte, mais velha e de outra cor. Tinha elaborado uma longa lista de requisitos quanto ao temperamento, comportamento tranquilo e silencioso, obediência exemplar, além de grande capacidade de adaptação com outros animais e pessoas, em especial com crianças e idosos. Queria interagir com ela antes de apresentá-la à minha outra cachorra, para descobrir se ela se submeteria facilmente ou não a meus comandos.

Preferiria. Mas a vida – ou, quem sabe, São Francisco – tinha outros planos para mim. Do nada, despencou em meu colo uma filhotinha esguia, do tamanho da palma de uma mão, com apenas 33 dias. Fico constrangida em dizer que ela é negra como as asas da graúna. Primeiro, porque nunca vi uma graúna na vida e, segundo, porque o linguajar politicamente correto dos dias de hoje assim o exige. Seja como for, mal dá para distinguir os olhinhos curiosos dela em meio à escuridão da pelagem.

Como todo bom filhote, ela me enlouquece diariamente, mordendo e arranhando minhas pernas e braços, destroçando os rolos de papel higiênico e pendurando-se em tudo o que está suspenso. Enfia-se pelos cantos mais improváveis, esconde-se dentro de sacolas, diverte-se derrubando e mordiscando garrafas pet. Corre pela casa como um foguete e late muito quando a companheira de quatro patas não aceita o convite para participar de suas muitas estrepolias. Desafia-me sempre que tento conter seus excessos e me encara com um olhar provocador, como se me dissesse: E daí? Vai fazer o quê agora?

Esta é a Vivi, protagonista da história.

Paradoxalmente, não tenho do que reclamar. Mesmo exausta de correr atrás dela dia e noite, posso afirmar que, como diz a canção, desde que ela chegou instalou-se como um posseiro dentro do meu coração.

As compensações são muitas. Ela tem se esmerado em me fazer reaprender a importância do perdão e da tolerância. Ajuda-me a relativizar todos os dias o conceito de autoridade. Ensina-me com leveza a conviver com as diferenças e com minhas próprias limitações. Mostra com graça como são ridículos os preconceitos de raça e gênero. Traz em seu corpo as marcas da brasilidade, da desejável miscigenação, e encanta a todos com sua beleza singela.

Além de ter estabelecido uma relação de total harmonia e cumplicidade com minha outra cachorra, ariana pura, ela também não se deixa intimidar por machos dominantes. Ao contrário, para usar uma palavra da moda, abusa do empoderamento feminino. Sabe se submeter quando isso é conveniente para sua sobrevivência, mas deixa claro que sedução é seu forte. Joga-se despudoramente ao chão, de barriga para cima, e depois lambe o focinho de qualquer um que rosne para ela.

Tal qual um vampiro, ela suga toda a energia dos circunstantes. Passa os dias perturbando a tranquilidade de minha outra cachorra e impedindo que eu me concentre em qualquer outra atividade. Noutro dia, cansada de procurar palavras para dissuadi-la de morder tudo e todos, tive uma ideia: se ela obedece em segundos aos latidos raivosos da Aisha, porque não obedece aos comandos da fala humana? Não tive dúvida: quando ela se aproximou, enchi os pulmões e soltei um latido forte, digno do de um pitbull. Foi tiro e queda. Ela olhou em volta, assustada, procurando a fonte do som e interrompeu de imediato o ataque. Só não entendeu até agora que raio de animal grandão capaz de emitir sons tão diversos sou eu.

Ainda é muito cedo para fazer previsões quanto ao porte que terá e para saber se manterá a postura sociável que demonstra agora. Torço apenas para que as memórias de uma infância feliz a preparem emocionalmente para levar a vida adulta com mansidão e alegria.

É certo que a abundante energia de um filhote não é compatível com o desejo de sossego de uma idosa como eu. Aliás, o que mais tenho ouvido nas últimas semanas é que sou louca, que deve haver um quê de masoquismo na estrutura de minha personalidade ou que o esforço de cuidar de apenas uma cachorra deveria me bastar. Tudo o que tenho a dizer em resposta é que há uma graça especial para mim em todo recomeçar.

Parafraseando T.S. Eliot, eu aconselharia a todos que temem embarcar em novas aventuras na velhice que descubram enquanto é tempo que “o fim de toda viagem é voltar ao ponto de partida, conhecendo o local pela primeira vez”.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Um pensamento sobre “Uma cachorra afrodescendente

  1. Que bom a Vivi ter trazido tanta felicidade e alegria para vc e a Aisha ao mesmo tempo que uma brisa de felicidade entra pelas janelas da sua casa.
    Parabéns para a pequena sedutora que parece uma jaboticaba.

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