José Horta Manzano
Primeira história
O jovem Alcebiades é um bom rapaz, sorridente, generoso, sempre pronto para dar uma mão a quem precisa. Seu defeito maior é vestir-se como gosta, apresentar-se ao mundo como lhe dá na telha. Não dá muita bola pa
ra o que os outros vão pensar. Ele é assim, uai.
Um dia, resolveu mandar rapar a cabeça nas laterais, deixando apenas uma faixa de cabelo da testa até a nuca. Pintou a crista de vermelho e modelou-a com gel ― parece que está na moda. Mandou fazer alguns piercings entre sobrancelhas, orelhas e lábios. Sem esquecer da língua, naturalmente.
Cebide, como é conhecido, gosta de contacto com gente e resolveu candidatar-se a um emprego de atendimento ao público. Currículo para lá, telefonema para cá, tudo correu bem. Foi chamado para entrevista.
Para se apresentar pessoalmente, Cebide achou que uma boa camada de sombra em torno dos olhos lhe daria um ar mais sério. Vestiu-se de negro dos pés à cabeça e foi. Não conseguiu passar da portaria da firma, o coitado. Foi barrado pelo segurança. Teimou, garantiu que tinha entrevista marcada. O leão de chácara foi-se informar e, meio a contragosto, deixou-o passar.
A moça da recepção mandou-o sentar-
se numa salinha acanhada, lá no fundo do corredor. Depois de uma boa meia hora de espera, ela voltou para avisar que, infelizmente, o selecionador tinha tido um imprevisto e não ia poder recebê-lo. Cebide foi-se embora desenxabido e nunca mais conseguiu marcar outra entrevista lá.
Nosso amigo chegou até a desconfiar que a recusa pudesse ter sido causada por sua aparência física. As pessoas são preconceituosas, sacumé, não conseguem imaginar que há coisa boa por detrás de uma aparência surpreendente. Mas resolveu deixar pra lá. Achou que não valia a pena, que a vida é assim mesmo. Da próxima vez, havia de dar certo.
.:oOo:.
Segunda história
Um casal de classe média alta, já de idade madura, tinha muita vontade de ter um filho pequeno. Por algum motivo, tomaram a decisão de adotar. O destino é insondável. Os dois, brancos, tornaram-se pais adotivos de um menininho de pele negra. A história não registrou detalhes, mas é de crer que os três viviam felizes.
Um dia, foram visitar uma concessionária de automóveis importados da Alemanha, daqueles potentes, raçudos, de forte cilindrada. Coisa que não está ao alcance de qualquer mortal. Levaram o menino junto.
A um dado momento, enquanto o casal se preparava a entreter-se com o gerente da loja, o filho afastou-se alguns metros. O dirigente não se deu conta de que os três estavam juntos. Ao ver um menino pequeno e negro dentro de uma concessionária daquele porte, tomou-o por um intruso e não teve dúvida: fez que fosse enxotado.
Chocados, os pais julgaram que o acontecido não podia ficar por isso mesmo. Passando por cima do gerente, endereçaram uma reclamação diretamente à diretoria do grupo automobilístico. E não pararam por aí: criaram uma página numa dessas redes sociais para dar publicidade ao episódio. Só não deram queixa à polícia. Por enquanto.
.:oOo:.
Epílogo
A primeira história é totalmente inventada. Caso se assemelhe a algum fato real, terá sido mera coincidência. Já a segunda é verídica. Pode ser conferida no artigo publicado pela Folha de São Paulo faz pouco mais de duas semanas.
Parece-me interessante traçar um paralelo entre esses dois fatos que põem em evidência casos de gente bruscamente descartada com base na aparência externa. Surgem muitas perguntas , mas, infelizmente, poucas respostas.
O Cebide ficou quieto, enquanto o casal estrilou. Por que essa diferença de reação? Será porque o primeiro é pobrezinho enquanto os outros estão bem de vida? Será porque o preconceito que vitimou o casal foi classificado como racial, ao passo que o que prejudicou o Cebide foi apenas facial? Se o menininho enxotado não fosse filho do casal branco, será que teria tido direito a página de desagravo no facebook? Se o Cebide fosse um figurão, será que teria sido tratado com a mesma sem-cerimônia?
A rejeição ao diferente é inerente a todo ser vivente. É síndrome ancestral. As leis de quotas raciais que se propagam hoje em dia perigam maquiar o problema sem resolvê-lo. Pelo contrário, o risco é de que venham a azedar ânimos e a criar uma vala entre “os de cá” e “os de lá”. Em resumo: o resultado pode ser exatamente o oposto do que se pretendia.
Quando várias comunidades, sejam elas étnicas ou raciais, são obrigadas a conviver, enorme cuidado tem de ser tomado antes de votar leis que favoreçam uns em detrimento de outros. No Brasil, esse assunto tem sido tratado com leviandade.
.:oOo:.
Fiz a lição de casa – isto é, pensei nos dois casos – e concordo com a conclusão de que o assunto discriminação tem sido tratado com leviandade no Brasil.
Porém, não concordo quando você afirma que a rejeição ao diferente é inerente a qualquer ser vivente. Para não me alongar com outras espécies, digo que, no caso dos humanos, a rejeição é derivada do medo – e, acredito, a cura do medo está na aproximação paulatina até que ocorra uma dessensibilização por exposição a vários exemplares dos “diferentes”. A grande dificuldade, me parece, é dar o primeiro passo. Os riscos existem, é claro, mas como diziam nossas avós “quem não arrisca não petisca”
CurtirCurtir
Obrigado pelo interesse, cara Myrthes. Estou de acordo que a rejeição pode ser filha do medo do desconhecido. Pode também ser cultural: rejeitamos porque assim nos ensinaram.
Parece assunto complexo demais para ser deixado nas mãos de nossos ineptos legisladores. Matéria ultrassensível exige tato, dedicação e muito tempo, exatamente as qualidades que fazem falta a nossos parlamentares atabalhoados, indiferentes e apressados.
CurtirCurtir