Você sabia ?
José Horta Manzano
Por mais que se considerem progressistas e ‘prafrentex’, os franceses são bastante conservadores. No trato com terceiros, a coisa sobressai. Há dois níveis de tratamento: tu e vous, ambos da segunda pessoa.
O tu, mais íntimo, é utilizado em família, entre camaradas de escola, entre adolescentes. É usado também no círculo de algumas associações sindicais ou profissionais, ainda que às vezes soe forçado. Tu denota intimidade. Quando a gente se dirige a alguém com quem não tem intimidade, o tu soa artificial, obrigatório. O vous, mais formal, usa-se nos demais casos ― a maioria.
O uso da terceira pessoa, em voga até um século atrás, é hoje considerado preciosismo démodé. Simbolizava um excessivo respeito que já passou de moda. Frases como «Madame est servie» (A Senhora está servida = o jantar está na mesa), dita por serviçais, só é ouvida hoje em dia em filmes históricos. De toda maneira, poucos são os que ainda se podem dar ao luxo de pagar empregados domésticos.
As regras de uso de tu e de vous são muito rígidas. Há casos, comuns por aqui, que deixariam qualquer brasileiro boquiaberto. Suponhamos que um seu colega de escritório se sente habitualmente à mesa ao lado da sua. Se a empresa funcionar, como a maioria, à moda antiga, você e seu colega perigam passar 20 anos sentando-se todos os dias um ao lado do outro e chamando-se reciprocamente de vous mais o sobrenome. Bonjour, Monsieur Dupont! Bonjour, Monsieur Dubois! Esquisito para nós, não? Imagine só: bom dia, senhor Silva! Bom dia, senhor Souza!
Se o ambiente de trabalho for menos rígido, talvez você se sinta autorizado a chamar seu colega pelo nome. Nesse caso, teremos: Bonjour, Jean! Bonjour Paul! Mas não se engane: continuarão a se dizer vous até o fim dos tempos. Jamais ousarão transpor o muro invisível que retém as pessoas e as impede de entrar na intimidade da outra.
O que acabo de descrever é o caso genérico, representativo do estado de espírito mais disseminado. Evidentemente, há situações particulares em que o relacionamento pode funcionar de outra maneira.
Um homem será sempre chamado Monsieur. Basta haver saído da adolescência. Pouco importa se é casado ou não. Será sempre Monsieur. Já o mesmo não ocorre com uma mulher, não me pergunte por quê. Chegada à idade adulta, ela se apresentará como Madame, se já for casada. Ou como Mademoiselle, se não o o for. E assim será chamada. Atenção: esse termo de tratamento será sempre seguido pelo sobrenome. Se não, fica parecendo nome de vidente ou daquelas que os antigos chamavam «mulheres de vida fácil».
Mas o tempo passa e os costumes mudam. Faz anos que movimentos feministas denunciam a flagrante diferença de tratamento entre homens e mulheres. Por que todos têm de saber se uma mulher é casada ou não? Por que os homens escapam a toda inquirição sobre seu estado civil?
Depois de muita luta, senhoras e senhoritas conseguiram que uma lei fosse votada para acabar com essa diferença. Embora já estivesse em vigor desde fevereiro do ano passado, o instituto legal só alguns dias atrás foi definitivamente referendado pelo Conseil d’Etat, a mais elevada jurisdição administrativa do Estado francês.
Uma lei, por mais que queiram seus instigadores, não consegue mudar mentalidades da noite para o dia. Não se pode proibir que formas consagradas por anos de uso popular desapareçam por encanto. O que o novo regulamento determina é que, nos documentos oficiais, seja abolida a diferença entre casadas e solteiras. A partir de agora, todas as mulheres serão chamadas Madame. Ponto e basta.
Isso vale para o Imposto de Renda, a conta de eletricidade, o IPTU, documentos de identidade, passaporte, carteira de motorista, enfim, tudo o que for documento oficial. A notícia saiu no jornal 20 Minutes de 28 de dezembro. Para quem quiser conferir, está aqui. Em francês.
Para mudar as mentalidades, ainda vai levar um tempinho. Modos de pensar não se mudam por decreto.
Em compensação: Madame le président, Madame le professeur, Madame le docteur, etc.; sabendo-se que a tradução ao pé da letra seria: Senhora O presidente, Senhora O professor, Senhora O doutor… Jamais Senhora A presidentA! (wilma)
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