O medo da morte

José Horta Manzano

Assim que o primeiro estalo de civilização atingiu os contemporâneos de Lucy, o homem se habituou a dar sumiço no cadáver de seus mortos. Desde então, nenhum povo costuma derrogar a essa prática.

Até poucos séculos atrás, não incomodava a ninguém que águas usadas, transformadas em fedido esgoto, escorressem a céu aberto. No entanto, ninguém jamais admitiu ter de alargar o passo para evitar pisar em cadáveres insepultos. A barreira entre vivos e mortos tem de ser física, forte, visível, intransponível. Alguns recorrem à cremação, mas a maioria prefere enterrar seus defuntos. Naturalmente, sem esquecer de instalar algo pesado por cima.

Esse «algo pesado» com que se cobrem as sepulturas é revelador de um pavor ancestral de que o falecido possa voltar, seja para cobrar dívidas deixadas em aberto, seja para agarrar algum vivente e arrastá-lo inexoravelmente para as trevas.

Na ausência de espiritualismo elevado, o homem primitivo cobria as sepulturas de pedras pesadas. Não era simbólico: era pra valer. Garantia que o finado, caso resolvesse retornar para buscar alguém, não tivesse força suficiente para levantar-se da cova. As lápides de mármore ou granito que, ainda hoje, povoam cemitérios daqui e de alhures são reminiscências desse pavor de ser puxado para os infernos.

O respeito à vontade dos mortos continua sendo a regra em nossa sociedade. As determinações daquele que se foi costumam ser rigorosamente respeitadas, ainda que se situem fora do âmbito da obrigação legal. Vocês já repararam que todo morto «vira santo»? Frase do tipo: «Ah, Fulano era tão bom, homem bom tava ali, sô» são as mais ouvidas em velórios.

Oscar Niemeyer faleceu faz alguns dias

Porta de cemitério

Porta de cemitério

. Falou-se muito dele quando da construção de Brasília, nos anos 50. Depois, pouco a pouco, sua figura foi-se esvaecendo na poeira das décadas. Sem desaparecer de todo, menções à sua obra escassearam. Não fosse a provecta idade do arquiteto, pouca atenção mereceria da mídia.

Como costuma acontecer com todos os viventes, Niemeyer faleceu. De repente, o Brasil descobriu que abrigava, sem saber, um semideus. Todos os jornais, revistas e blogues se desdobraram em elogios. Algumas poucas vozes arriscaram timidamente a argumentar que o finado também tinha seus defeitinhos. Foram caladas pelo clamor indignado da maioria.

Barbara Gancia, apresentada como «mito vivo do jornalismo tapuia», contou, em sua coluna da Folha, um episódio relacionado ao arquiteto. Não é que o artigo seja ofensivo, simplesmente ele diz as coisas como aconteceram. Deixa nas entrelinhas, no entanto, a impressão de que nosso gênio nacional às vezes podia também se enganar.

A coluna da jornalista foi bombardeada com uma verdadeira avalanche de comentários revoltados, alguns francamente ofensivos. Pode haver outras razões, mas, a meu ver, o pavor ancestral que a morte nos causa está patente nessas demonstrações de repulsa. Não se deve falar mal dos mortos. Nunca se sabe, podem até se ofender e vir puxar nosso pé de noite. Cruz-credo!

Mas o tempo é remédio para tudo. Passado o luto, o medo diminui. Alguns anos depois, talvez sentindo que o perigo já passou, o homem volta a enxergar seus mortos como realmente foram, com suas qualidades e seus defeitos.

E a vida continua.

Dê-me sua opinião. Evite palavras ofensivas. A melhor maneira de mostrar desprezo é calar-se e virar a página.