Quebrando hábitos

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Desde que me conheço por gente, sempre senti a necessidade de permanência. Não sei lidar bem com nada que me traga a sensação do efêmero, do transitório. A angústia que toma conta de mim quando algo muda ou acaba é tão devastadora que me fez desenvolver ao longo da vida um apego doentio pela rotina.

Minha ansiedade aflora desde quando ocorre o afastamento ou morte de pessoas queridas até pequenas perturbações do dia a dia, como uma simples mudança na mão de direção de uma rua que costumo utilizar. Se sei que tenho um compromisso agendado para amanhã, revejo instintivamente as tarefas que vão ser afetadas e me programo para realizá-las em outra ordem, outra hora ou outro dia. Se o evento é inesperado, primeiro entro em pânico e, quando mais tarde consigo voltar a respirar, aciono mentalmente todas as pessoas que poderiam me prestar ajuda, mesmo que seja na forma de aconselhamento.

calendario-1Hábitos são armadilhas, eu sei, mas me é sempre muito difícil resistir à doce ilusão de conforto e proteção que eles trazem. Como me alertava uma amiga consultora organizacional, a mente burocrática está assentada sobre dois pilares: a necessidade de controle e previsibilidade. Num cenário de crise, é inevitável que esses sustentáculos de segurança sejam abalados. Sem liberdade interna, não há condições para buscar soluções criativas.

Ultimamente venho sendo desafiada pelo destino, como em nenhuma outra fase de minha vida, a criar jogo de cintura. Mesmo ‘à contre-coeur’, praticamente todos os dias vejo-me forçada a adaptar meu corpo e minha cabeça a situações novas, criadas tanto pela deterioração das minhas condições físicas e financeiras quanto pelas do ambiente em que vivo. Para piorar, o desconforto, na idade em que estou, é um companheiro para lá de irritante, nada leal.

Relógio solarAcontece que, sem ter consciência plena do que estava fazendo, acostumei também minhas cachorras a conviverem com um rígido esquema de vida. Elas têm hora certa para acordar e para dormir, para comer, para passear e até para brincar. Têm dia certo para tomar banho. Têm local certo para desenvolver cada uma dessas atividades. A cada vez que elas tentam burlar minha “sistemática”, como dizem meus parentes mineiros, repito qual papagaio: “agora, não”, “espera um pouco”, “me deixa em paz”.

Pois bem, o preço dessa conduta insana me foi cobrado há dois dias. Minha irmã, condoída com o estado deplorável de meu sofá, resolveu me dar de presente um dos dela, que estava fora de uso, mas ainda em boas condições. Para acomodá-lo, fui obrigada a rearranjar todos os móveis da sala, dado que suas dimensões eram bastante diferentes.

A configuração da sala não era alterada havia mais de uma década, portanto, minhas cachorras nunca haviam passado por uma experiência similar. A mais nova estava habituada a dormir num canto entre o sofá e a parede, debaixo de uma mesinha lateral. A mais velha costumava se estender na frente do sofá, muitas vezes se aninhando embaixo das minhas pernas e dificultando minha locomoção. Com a mudança do layout, o espaço de “dormitório” da mais nova acabou sendo eliminado e o de relaxamento da mais velha, comprometido.

calendario-2Para meu desespero, tão logo terminei de colocar tudo no lugar, as duas entraram em um estado inacreditável de frenesi e ansiedade. Caminhavam sem direção e sem descanso pelo apartamento todo. Recusaram-se a comer, tanto na hora do almoço quanto na do jantar. O incômodo da mais nova era tão evidente que ela chegou a rejeitar até mesmo os petiscos pelos quais, antes, daria alegremente a vida. Meu descontrole emocional passou a alimentar o delas e vice-versa.

Foi então que me lembrei de um exercício recomendado por meu médico antroposófico para quebrar rapidamente hábitos arraigados. É um método engenhoso, mas simples e relativamente indolor. Consiste basicamente na criação do “dia do contrário”. Nesse dia, que deve acontecer pelo menos uma vez por mês, é preciso fazer tudo diferente do costumeiro: ensaboar-se numa sequência distinta, abrir portas, escovar os dentes e o cabelo com a mão errada, vestir-se de maneira não-usual, adotar um novo itinerário para chegar ao trabalho, alimentar-se com ingredientes alternativos, etc. Com isso, a sensação de aprisionamento pode finalmente chegar à consciência e determinar os passos que ainda serão necessários para se livrar de outros condicionamentos.

Resolvi testar a eficácia do método com minhas cachorras. No dia seguinte, levei-as a passear pela manhã, quando o habitual era o passeio à tarde. Dei comida algumas horas depois do esquema tradicional para que a fome as induzisse a aceitar de novo a comida. Espalhei iogurte por cima da ração seca para que o cheiro, o sabor e a textura dos grãos fossem alterados. Troquei os petiscos. Coloquei o sofá antigo em outra posição na sala, atravancando a passagem que elas estavam acostumadas a usar. Mudei minha rotina de trabalho para dar atenção e brincar com elas em horários incomuns – e rezei para que a estratégia funcionasse logo.

Relógio moleNo começo da noite, exausta, me dei conta de que havia uma quietude estranha no ambiente. Naquele horário, as duas ainda estariam ativas, brincando uma com a outra ou latindo para chamar minha atenção. Curiosa, fui pé ante pé até a sala e me deparei com uma cena enternecedora: a cachorra mais nova dormitava relaxadamente entre os dois sofás e a mais velha dormia a sono solto estendida na frente do novo sofá. Não tenho palavras para descrever a alegria e o alívio que experimentei. Só me ocorria saborear demoradamente essa recompensa sem igual para tantos eventos paradoxais do dia.

Posso informar a todos que já estou novamente me sentindo apta a pontificar a respeito do dom precioso que é ser capaz de flexibilizar o próprio credo comportamental. Isso sem falar da sublime leveza que se experimenta ao abrir mão das zonas de conforto. Recomendo a experiência a todos de “alma pequena” como eu.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.