José Horta Manzano
Este sábado 25 de janeiro, tive confirmação de minha teoria sobre o perigo dos pronunciamentos que líderes fazem quando estão fora de casa. Quando estão de viagem no estrangeiro ou também no avião que os conduz de um lugar a outro, chefes de Estado e chefes de governo deveriam prestar extrema atenção às palavras que proferem. Políticos de alto coturno já tiveram de encerrar a carreira devido a uma frase imprudente pronunciada em viagem. Há anos escrevi um post sobre o assunto.
Com um impressionante barulho de fundo – eu nâo imaginava que o 747 Air Force One fosse tão barulhento – Trump conversou uns vinte minutos com jornalistas que viajavam com ele, num estilo pingue-pongue (perguntas breves e respostas rápidas).
O assunto principal era a guerra de Israel em Gaza. Donald Trump exprimiu seu desejo de esvaziar totalmente a Faixa de Gaza (2 milhões de habitantes!) e despachar essa população para os países vizinhos, Egito e Jordânia.
Aqui tenho de abrir um parêntese. Convém estabelecer uma correlação entre a espantosa ideia revelada no avião e as palavras que o próprio Trump pronunciou logo depois de ter sido empossado. No dia da posse, o novo presidente disse que Gaza “realmente tem de ser reconstruída de um jeito diferente”. Ele acrescentou que “Gaza é muito interessante por gozar de localização espetacular à beira-mar, no melhor clima, onde tudo é bom. Coisas lindas poderiam ser feitas lá”.
Nesse ponto, é bom sentar, tomar uma respiração profunda e refletir um instante.
Esvaziar? Expulsar aquela ralé? Limpar o terreno? Construir coisas lindas? Vindas de quem enricou no ramo imobiliário e mantém negócios na indústria hoteleira, essas palavras fazem sentido. Não são elucubrações de um qualquer, são projetos com começo, meio e fim, feitos por quem é do ramo. É capaz até de o orçamento estar pronto.
Esses acontecimentos me inspiram pelo menos duas reflexões.
A primeira
Donald Trump mais uma vez passa recibo de absoluta inaptidão para as funções que ocupa. Apesar das lantejoulas e dos paetês, salta aos olhos sua ignorância profunda de História Geral, em especial da História do Oriente Médio. Tampouco sabe como funcionam as relações entre estados. No vácuo de sua cabecinha, cabe a ideia de dar, aos países vizinhos, ordem de abrir a fronteira e aceitar os milhões de infelizes habitantes de Gaza. E pronto, o problema está resolvido.
Ignora que cada país tem sua soberania, seus problemas, seus objetivos em política interna e externa. E que, apesar de receberem ajuda dos Estados Unidos, nenhum deles está disposto a importar milhões de estrangeiros só para agradar Donald Trump. Se o problema é encontrar um pouso para os gazeus, por que é que o presidente não os leva diretamente para os EUA? Por que não lhes daria um pequeno território para viverem tranquilos, longe dos israelenses e das bombas? É feio dar esmola com o chapéu alheio, como Trump está fazendo.
Os eleitores de Donald, que vivem alienados do mundo, que não leem nada, que não assistem nem ao jornal da tevê, que só se informam pelas redes trumpistas, nunca vão se inteirar do que se passa em Gaza, nome que só conhecem de ouvir falar. Trump pode dizer ou fazer o que bem entender, que seus fãs vão continuar usando um boné vermelho escrito “Make America great again”. E vão continuar votando no Salvador.
A segunda
Mais uma vez, Trump mostra que só se lembra da raça humana em tempos de eleição. Fora isso, para ele, os seres humanos não passam de peões, peças sem grande valor alinhadas num tabuleiro. Tirá-las do caminho ou eliminá-las faz parte do jogo e não lhe causa engulhos. É tão humanista, flexível e empático quanto uma porta de aço. Fechada.
Os EUA não são nenhuma Finlândia, nenhuma Islândia, países onde a distância entre os abastados e os necessitados é pequena. No país de Trump, há amplo contingente populacional de renda baixíssima, que não tem nem como tratar da saúde ou dos dentes. Depois de “limpar” a Faixa de Gaza, o que é que Trump pretende fazer com esses infelizes? Fazer uma limpeza de terreno, tirá-los do caminho e despachá-los para longe da vista, digamos, para a Groenlândia?
Inepto, ignorante e desumano, assim é o miliardário que hoje governa o país mais poderoso do mundo. E certamente assim são os que o cercam, miliardários ou intrometidos. É um clube em que cada sócio puxa a brasa para sua sardinha sem ligar a mínima para as necessidades do populacho.
A continuar nesse passo, daqui a pouco tempo Gaza terá se tornado destino turístico mundial, com palmeiras à beira-mar, livre de árabes pobres, com hotéis, cassinos, “resorts” de luxo e cais especiais para grandes iates. Seu nome será mudado. Em vez de Gaza Strip, será Plaza Strip, um spot internacional de luxo aberto aos nababos de todo o planeta. Naturalmente, os árabes serão acolhidos de braços abertos – desde que sejam endinheirados.

Excelente análise!
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Muito obrigado.
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Horta, não obstante a ignorância visível de Trump, existem fatos de bastidores e nem tanto dos bastidores, que nos mostram que foi ele o responsável pela libertação de reféns que estamos testemunhando. De 2023 para cá, sob a administração Biden, reféns não estavam sendo liberados. Antes de assumir, Trump deu um ultimato ao Hamas. Parece que surtiu efeito. Não sabemos o que houve, mas o fato é que na véspera da posse de Trump em Washington, o Hamas começou a devolver reféns israelenses.
Outro detalhe que deve ser considerado é o equívoco recorrente de chamar todo morador não judeu que vive em Israel de “árabe”. Veja, árabe é todo aquele/aquela nascido(a) na península arábica. Ser árabe não está ligado a uma religião, mas a um local de nascimento. O ato de ser muçulmano sim, tem a ver com uma religião. A maior parte dos povos de religião muçulmana que habita Israel sequer é árabe. Têm diferentes etnias. Israel é uma babel multifacetada de povos. Estudos de DNA nas regiões de Gaza e da Cisjordânia revelaram que boa parte dos povos que habitam Israel são de origem da região africana subsaariana, não tendo conexão com os árabes da península arábica. Muitos foram levados como escravos para países da península arábica e depois migraram para Israel, durante as guerras na terra santa. Nesse mesmo imbróglio verificamos por exemplo que os iranianos não são árabes. São massivamente ligados a civilização persa. São muçulmanos? Sim. Mas não são árabes. Os egípcios. Falam árabe. O nome de seu país inclui até o nome República Árabe do Egito. Mas estão longe de ser árabes. São africanos.
E o que dizer de Gaza? Gaza é um capítulo a parte nessa história toda. Teria que escrever um texto de proporções bíblicas aqui. Mas não desejo colocar sobre vossos ombros tamanho fardo. A histórica terra dos Filisteus, grandes inimigos do povo hebreu/judeu, cujos reflexos ainda em 2025 são perceptíveis.
No mais, devo apenas dizer que trabalhei por cinco anos nos Estados Unidos da América e a desinformação em relação à Geografia é algo assustador na terra de Donald Trump. Um colega meu, britânico, certa vez tentou pagar seu lanche no aeroporto internacional de São Francisco e a caixa disse que iria chamar a polícia. Meu amigo, que não tinha mais notas de dólares no bolso, pois já estava voltando pro Reino Unido, resolveu pagar a conta usando libras esterlinas. A moça do caixa lhe disse: — “O senhor está tentando usar dinheiro de mentira pra pagar a conta. O único dinheiro verdadeiro no mundo é o dólar americano”.
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Prezado 777,
Agradeço pelas frequentes (e interessantes) intervenções. Sem dúvida, as ações estouvadas mas incisivas de Trump geralmente surtem o efeito que ele mirava. Foi o caso dos reféns presos em Gaza.
Mas repare que, até este momento, ele se especializou em arrumar encrenca com inimigos frágeis, que dependem mais dos EUA do que os EUA dependem deles. Enfrentou o México (mas não o Canadá), enfrentou a América Latina (mas não a Europa), enfrentou o lado fraco do Oriente Médio (mas não o lado forte, que é Israel).
Estou pra ver quando chegar a hora de ele parar de gargarejar ameaças e pôr-se a aplicar as sanções que promete contra países mais fortes, como China, Índia, Rússia. Aí, sim, a porca vai torcer o rabinho.
Quanto à definição da “arabidade” de cada povo do Oriente Médio, não tenho certeza de concordar com a visão de vosmicê. Mas não me parece de suma importância. Naquela região, árabes ou não, entre guerras, falta d’água e bombas, sofrem todos. Cada dia em que se acorda vivo já é uma conquista.
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