Pé no peito com a perna esticada

José Horta Manzano

Um pacato senhor de 77 anos atravessava uma rua da cidade de Santos (SP) levando pela mão o netinho de 11 anos. O sinal estava fechado, os carros enfileirados, e os dois se esgueiravam entre os automóveis. Quando cruzaram a frente de um motorista, este encrespou e fez menção de acelerar pra cima dos dois. Para não cair, o senhor se apoiou no capô do carro. Invocado, o motorista não gostou. (Talvez seja do tipo que, tendo horror a pobre, sentiu como se o toque no carro fosse uma invasão de propriedade.)

Em seguida, demonstrando que seu ressentimento é colérico, frio e persistente, o motorista ofendido, homem de 39 anos, estacionou o carro e voltou para tirar satisfações do ancião. Furibundo, logo ao encontrar o velhinho que tinha ousado tocar em seu carro, pespegou-lhe uma “voadora”. Não sabe o que é? É um tipo de golpe violento que se costuma ver em filme de Kung Fu. Dar uma voadora é aplicar na vítima um impetuoso “pé no peito com a perna esticada”.

O senhor atacado caiu desacordado, de costas no cimento, e lá ficou, imóvel. Os esforços do Samu foram inúteis. Depois de algumas paradas cardíacas e reanimações, seu coração não aguentou. Parou para sempre. O agressor fugiu e tentou se misturar ao burburinho de um shopping center. Não deu certo: foi apanhado e levado à delegacia.


“O coração desse senhor quase estourou no peito, tamanha a violência dessa voadora”, afirmou a delegada que registrou o caso. “Ele faleceu em virtude dessa lesão”.


A sordidez do acontecido revoltou a sociedade santista e ecoou no Brasil inteiro. É que o caso concentra três das oposições mais clivantes de nossa sociedade.

Pedestres x donos de carro de alto padrão
Pobres x ricos
Jovens x velhos

O Brasil, que gostamos de imaginar já ter entrado no século 21, ainda sofre esse tipo de mazela em intensidade africana. Muitos brasileiros, com notável concentração entre os que têm simpatia pela extrema direita, sofrem de aversão a pobre. Consideram-se superiores a essa “gentinha”. Quando um pobre ousa encostar a mão no “MEU” automóvel – que é prolongamento de “MEU” próprio corpo – a explosão de cólera é inevitável. Pode conduzir à violência e até ao homicídio, como prova o caso de Santos.

Esse mesmo valentão, que se atreveu a matar um ser humano com as próprias mãos (mais adequadamente, com os próprios pés calçados), voltou ao local da voadora dias após o crime. Foi trazido pela polícia para uma reconstituição. Lá pelas tantas, resolveu mostrar seu talento cênico. Ensaiou um choro convulso, ajoelhou-se no cimento, levantou os braços ao céu como quem pede bênção, e implorou por perdão diante da pequena multidão que o apupava e que clamava por justiça.

Ainda não se sabe quando será julgado. Por minha parte, torço para que pegue uma pena bem longa, que lhe dê o tempo necessário para refletir e baixar a crista. Se sair um dia da cadeia compenetrado de que é um ser humano igual aos outros, nem pior nem melhor, o encarceramento já terá sido útil.

Meu amigo Aldo Bizzocchi, doutor em Linguística, me chamou a atenção para o enrosco em que se meteu o estagiário do portal G1 ao bolar a chamada da reconstituição. É o texto que aparece lá em cima, na entrada deste post.

“Deu voadora em idoso morto”? Que horror! Configuraria crime de necrofobia! Acontece que a vítima estava viva ao ser atacada. Portanto, não houve crime de vilipêndio de cadáver, mas de homicídio.

Dependendo da requalificação do crime, o hoje encarcerado autor da voadora periga ser julgado por homicídio doloso com agravantes (impossibilidade de defesa da vítima). Pode pegar 20 anos à sombra. O fato de já ter passagem pela polícia por desacato e estelionato só serve para enevoar sua imagem.

3 pensamentos sobre “Pé no peito com a perna esticada

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  2. Infelizmente, seus bons votos não valeram. Aconteceu ontem de novo, no Rio de Janeiro. A única diferença é que o idoso não morreu: quebrou uma costela e teve um corte na testa por causa dos socos que levou.

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