Limbo ou… o insustentável peso de ser brasileira

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Há mais de uma semana mergulhei de cabeça num estado anímico a que dou o nome de “limbo” e que, infelizmente, me é para lá de familiar.

Para não iniciados, trata-se do conceito católico de “lugar fora dos limites do céu, onde se vive de forma esquecida, longe da beatitude”. Embora não deva ser confundido com o purgatório, já que ao limbo estão destinados os justos e os inocentes que, por falta de batismo, guardam o pecado original, minha sensação de desamparo parece a de um pecador emperrado a meio caminho entre céu e inferno.

Z-Unknown 1Fora do contexto religioso, limbo rima com ostracismo e esquecimento. Em qualquer contexto, é fácil imaginar o desconforto e a tortura psicológica de se sentir num lugar em que nada ata nem desata.

Minha experiência de limbo traduz-se pela sensação de estar à margem da vida e de olhar ao redor com indiferença e alienação. Durante as crises, nada me interessa. Os acontecimentos dizem respeito a outrem, não encontram eco em mim. Falta-me vontade para tudo, desde levantar pela manhã até decidir se vou tomar banho ou não. Meus pensamentos vagueiam sem destino. Não sinto desejo de me comunicar com ninguém. Na boca, um gosto ruim. No corpo, uma sensação difusa de intoxicação, como se tivesse bebido ou comido demais. Emocionalmente, só um ir e vir doentio de sentimentos e pensamentos.

Torturante é querer escapar e não saber como. É energia física, mental e espiritual estagnada. Não há raiva nem revolta nem indignação. Apenas tristeza flácida, filha dileta da impotência e do cansaço. Sobram tédio, indisposição e má vontade. Falta fio terra, portanto, não há descarga.

Z-Unknown 2Quando eu me tratava com a medicina antroposófica, bastava ligar para o médico e dizer: “Estou no limbo”. Ele sabia decodificar minha queixa e dar o tratamento. “O fígado é o órgão da vontade”, explicava, “É preciso eliminar as toxinas acumuladas e dar tempo para a regeneração. Fígado sobrecarregado acaba interferindo no funcionamento da vesícula, a bile se acumula e daí advém a melancolia”. Fazia sentido e, na prática, funcionava.

Agora que não disponho mais daquelas sábias orientações, assumo sozinha o papel de detetive. Onde foi que errei a mão, exagerei e acabei sobrecarregando o fígado? Sei que não me empanturrei. Não bebo. Será que abusei do fumo? Ou, quem sabe, seria acúmulo de emoções tóxicas?

Z-Unknown 3De repente, faz-se luz: é isso, sofri uma indigestão política. Se antes já era duro poupar ao fígado explosões emocionais, imagine os danos que lhe causei ao degustar tanto veneno político. Relembro as longas horas acompanhando as votações no STF e no Congresso, as notícias eletrizantes sobre o mais recente escândalo de corrupção, as imagens acachapantes dos movimentos de rua, as manifestações de ódio nas redes sociais, a angustiante espera pelo desenlace. Depois, a vergonha de ver minha pátria transformada em mera republiqueta de bananas, a sensação surreal de estar me defendendo de transgressões que não pratiquei ou de estar defendendo o indefensável.

Aos poucos, as peças do quebra-cabeça vão se encaixando. É claro, eu estava viciada na adrenalina do desejo de demonstrar intelecto superior e análise equilibrada, mas acabei saturada. Daí o distanciamento afetivo compulsório, a obnubilação mental, a congestão psíquica.

Z-Unknown 4A revelação finalmente faz mover alguma coisa lá dentro. A dificuldade de exprimir minha provação acaba por me lembrar de outra perda: o afastamento do meu anjo. Sem a ajuda dele, titubeio e sou forçada a reescrever cada pensamento. Em meio ao cipoal de becos sem saída em que me enfio, percebo que a ausência dele pode até ser benção disfarçada. Talvez tenha sido apenas estratégia para me animar a dar o primeiro passo.

Ainda estou em processo de regeneração, ainda caminho em terreno pantanoso. De qualquer maneira, sinto que a chuva, o friozinho e os tons pastel da natureza podem me ajudar a concluir esta passagem pelo sótão de minha própria inutilidade. Vou me enrodilhar como gato e aprender a espantar os cães que ousarem ladrar enquanto a caravana passa.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.