Admirável Brasil Novo

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Por caminhos insondáveis, fui estimulada a pesquisar na internet as razões da atual crise internacional de representatividade política, a aparente obsolescência dos regimes democráticos e a espetacular guinada à direita no cenário pós-eleitoral brasileiro.

A prevalência entre nós do ideário conservador e das soluções de força, assim como o aprofundamento das exigências de compatibilidade entre o plano de governo e as crenças religiosas fundamentalistas do grupo do entorno do presidente eleito incomodam, inquietam e geram especulações em intelectuais de todos os matizes.

Na base desse quadro funesto, o aspecto mais chocante, ao menos para mim, está na condenação virulenta de toda forma de ideologia humanista, tradicionalmente associada às esquerdas. É como se o fato de propugnar pela desarticulação sumária de valores universais ‒ como respeito aos direitos humanos, ou mesmo de valores locais, como tolerância e convivência harmoniosa entre desiguais ‒, não representasse uma ideologia em si mesma.

Associadas à repulsa pela igualdade de tratamento na concessão de benefícios sociais, fazem sentir sua presença outras bestas apocalípticas: a repulsa à diversidade em todas as suas formas; o desdém pelo discurso politicamente correto em nome de uma pretensa liberdade de expressão; a criação de parâmetros normativos para a educação, para a atuação da imprensa e até dos programas televisivos de entretenimento; o moralismo que se traveste de necessidade de controle social para coibir o empoderamento das minorias e para definir o que é ou não manifestação artística.

Ao mesmo tempo, nossa consciência cidadã, a cada dia mais acabrunhada, termina por se anestesiar de vez diante de tanto furor nacionalista. O brasileiro médio, que já foi um dia o homem cordial, orgulhoso de sua mestiçagem, tranquilamente aconchegado em seu estrato social e plenamente identificado com a ideia de habitar o país da conciliação e das revoluções sem sangue, agora se vê aturdido na defesa a qualquer preço da mãe pátria, a mesma mãe que lhe nega colo, preferindo oferecer suas tetas repletas de leite aos filhos histórica e socialmente mais bem equipados.

Como chegamos a esse estado de coisas? Os mais apressados tendem a oferecer uma resposta pronta: culpa do governo anterior, que estimulou a luta de classes, aparelhou o estado para nele se perpetuar e lucrar mais com o butim dos cofres públicos. Essa é, sem dúvida, uma possibilidade concreta, mas, a meu ver, não esgota de forma alguma o assunto.

Se o temor primeiro da maioria de nossos concidadãos fosse mesmo a implantação de uma ditadura comunista na oitava ou nona maior economia do planeta, em pleno século 21 e em meio ao descrédito do marxismo, por que então tantos se predispõem a aceitar um regime que se anuncia abertamente como totalitário e com forte viés militarista? A única resposta que posso conceber é que já quase ninguém aceita que o proletariado tupiniquim continue (?) a dar as cartas. Se a farinha é pouca, gritam as ruas, que nosso pirão venha primeiro.

Por mais agressiva que seja a constatação, não estamos lutando por mais democracia. Consciente ou inconscientemente, queremos menos gente reivindicando direitos, queremos alguém de pulso firme que possa calar as vozes de quem busca um lugar ao sol neste momento em que as nuvens sombrias da economia toldam nossa visão de progresso.

Foi buscando entender este acúmulo de paradoxos que fui direcionada pelo mecanismo de busca aos escritos de Ignacio Ramonet, jornalista e sociólogo espanhol, doutor em semiologia, professor de teoria da comunicação e diretor do jornal Le Monde Diplomatique. O primeiro artigo dele a que tive acesso intitula-se “A atualidade chocante de Admirável Mundo Novo”. Na sequência, me deliciei com a leitura um outro artigo por ele escrito em 1995, no qual introduziu o conceito de ‘pensamento único’.

Neles, Ramonet tece uma vasta e rica argumentação a respeito da onda de neoliberalismo que varre o mundo, da primazia do fenômeno econômico sobre o político, da supremacia do mercado e avança na abordagem das múltiplas formas contemporâneas de manipulação da mente humana, em especial através da publicidade, das pesquisas de mercado e do marketing.

Como premissa básica das análises de Ramonet, destaca-se o conceito de condicionamento pavloviano. Para quem não o conhece, explico: o cientista russo Pavlov, partindo da tese de que os cães aprendem por associação, teve a ideia de apresentar um pedaço de carne a um cão simultaneamente à detonação de uma campainha para verificar se ele se condicionava a salivar sem o cheiro da carne, apenas ouvindo o som. O sucesso foi estrondoso. Um efeito colateral não-previsto do treinamento botou, no entanto, tudo a perder. Durante as sessões, o cão ficava atado a uma mesa do laboratório, que fora construído no porão de uma casa. Certo dia, uma chuva intensa provocou a inundação do porão. O cão, ao invés de tentar escapar do recinto, pulou então para a mesa e lá permaneceu imobilizado na posição, provavelmente acreditando que dessa forma estaria protegido. Morreu afogado o infeliz.

Tal qual o cão de Pavlov, diz Ramonet, somos pacientemente doutrinados desde o nascimento a conhecer e aceitar nosso lugar no mundo, adotando as crenças e valores de nosso grupo familiar. Mais tarde, a escola se encarrega de aprofundar e alargar nosso condicionamento social. Na sociedade pós-moderna, outras forças – como a televisão, as redes sociais, a publicidade e a globalização – tornaram o quadro mais complexo para a perversa indução de comportamentos desejados por quem está no poder.

Fiquei simplesmente apalermada com a coincidência de tópicos abordados por Ramonet nesses artigos e os que elenquei quando escrevi um livro ao qual dei o título de Guia Básico de Adestramento de Humanos. Quase uma década se passou desde que me dediquei a investigar o tema, mas posso jurar que o mesmo horror me invade ainda hoje quando penso nas armadilhas ideológicas a que estamos expostos diariamente.

Uma delas, a mais preocupante e infame, atrai minha atenção em especial: a proposta da Escola sem Partido. Não sou especialista na área, mas jamais me cansarei de levantar duas objeções indignadas a esse projeto. A primeira diz respeito ao fato de que o cérebro humano só se desenvolve estabelecendo novas conexões entre fenômenos díspares. A segunda refere-se à premissa não-verbalizada de que as crianças não têm como se defender da doutrinação de seus mestres. Ou, mais precisamente, de que a mente infantil é uma tábula rasa na qual se pode imprimir os códigos atitudinais que desejarmos.

Educação é diferente de ensino. A função da escola é ensinar a pensar, não a de criar clones. O pensamento crítico é uma conquista que só se obtém pelo confronto de ideias, teorias e visões de mundo. Faço minhas as palavras de Henri Michaux, um escritor e poeta belga: “A aprendizagem da aranha não é para a mosca”.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Um pensamento sobre “Admirável Brasil Novo

  1. Triste e trágica a guinada à direita que vem ocorrendo pelo mundo e mais triste quando se trata do nosso país que é jovem em termos de convivência democrática. Não é um belo futuro sermos reduzidos a imagem e semelhança do cachorro pavloviano.

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