Bomba-relógio

José Horta Manzano

Que o grosso de nossos parlamentares seja de segunda categoria, disso já estamos carecas de saber. Assim mesmo, há momentos em que descem fundo no fosso da indignidade. Já seria inquietante se meia dúzia de eleitos se recusasse a aprovar uma atualização das regras da previdência social. É surreal que a proposta em tramitação no Congresso não encontre apoio da maioria. Não dá pra entender.

Convivemos com leis concebidas 75 anos atrás, quando o Brasil era bem diferente. O mundo evoluiu, a esperança de vida se prolongou, umas profissões desapareceram e outras surgiram, a alfabetização se alastrou, mudamos várias vezes de regime político e de moeda, tivemos revoluções e golpes de Estado, presidentes assumiram, renunciaram e foram destituídos. Apesar disso, tirando ajustes pontuais, a coluna mestra das leis trabalhistas e previdenciárias permanece impávida, destemida, sobranceira, imutável.

Tudo o que nos cerca se adaptou aos novos tempos. Regras de tráfego, currículo escolar, regulamentações profissionais, estilo vestimentário, linguajar do dia a dia mudaram. A medicina avançou, a população do país quintuplicou, a saúva desapareceu, o óleo de fígado de bacalhau deixou de ser o espantalho dos pequeninos. As mulheres não estão mais condenadas a ser operárias ou professoras ‒ podem exercer qualquer profissão. A Argentina deixou de ser o inimigo ancestral. As ditaduras desapareceram da Europa. A União Soviética desmoronou e a China se agigantou. O café não é mais nossa monocultura. Inexplicavelmente, nossas leis trabalhistas empacaram, congeladas num passado distante.

Óleo de fígado de bacalhau ‒ quem já tomou guarda lembrança aterrorizante

Eu disse inexplicavelmente? Qual nada! A explicação é evidente. Os que têm a prerrogativa de atualizá-las sempre se eximiram de o fazer. De olho na popularidade e na eleição seguinte, furtaram-se ao mandato concedido pelos eleitores. Ousemos a palavra: acovardaram-se. Traíram (e continuam traindo) a confiança neles depositada.

Caso não se consiga aprovar uma atualização das leis trabalhistas e previdenciárias agora, estaremos legando aos que vierem depois uma bomba-relógio. É covardia. Mas temos como nos vingar. Basta deixar de votar nos parlamentares que se tiverem furtado a aprovar as mudanças na legislação. Hoje, com internet, redes sociais, portais de transparência & congêres, é fácil saber quem é quem e quem fez o quê.

Nós ficamos com a bomba. Mas eles perdem a eleição e a boquinha.

4 pensamentos sobre “Bomba-relógio

  1. Aparentemente, o furo é mais embaixo por estas plagas. O grosso da população é contra a reforma da previdência e apoiará nas próximas eleições quem a rejeitar. Como você mesmo nos lembra frequentemente, estamos focados nos “direitos” adquiridos e odiamos quem nos lembra que temos também deveres. Outro fator que pesa muito contra a reforma é a falta de credibilidade de Temer e seus ministros – os quais, diga-se de passagem, já demonstraram inúmeras vezes que a única coisa que conta para que eles votem a favor da reforma é o quanto eles vão ganhar com isso.

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    • Que gostem ou não, a reforma terá de ser feita. É imperativo. É como dente cariado. Quanto mais tempo se deixa, mais dói e mais caro fica.

      Quando éramos obrigados a engolir o óleo de fígado, simplesmente engolíamos. Ninguém deixou de gostar da mãe por causa disso.

      O que está faltando é didática. Os responsáveis pelas reformas teriam de vir a público e ensinar, mostrar, comparar, explicar. Não há como escapar.

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  2. Sei lá, se o argumento de que a Lei da Previdência é arcaica fosse tão determinante o buraco ia ter que ser grande para caber as mudanças necessárias……..tem bastante coisa arcaica aqui…………enfim, sem dúvida o buraco é mais embaixo………..implica, em parte, num entendimento, que não é consenso nem de longe, de quem o bem do Estado é o bem do indivíduo, e não o contrário………..aqui parece que a ordem altera o produto……….uma fatia da pizza vai perder, e certamente não vai ser a dos responsáveis por tomar essa decisão…………..

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