Aventura no consulado

José Horta Manzano

Faz alguns dias, publiquei um artigo sobre o preço exagerado do passaporte brasileiro. Mostrei também minha indignação com a profusão de nossas representações diplomáticas em partes do mundo onde são claramente supérfluas.

Semana passada, estive no consulado do Brasil em Genebra para tirar novo passaporte, que o meu acaba de vencer. Comparado com o de dez anos atrás, o atendimento melhorou, está mais civilizado. Ainda assim, a recepção me pareceu fria e distante. Está mais com cara de repartição pública do que tinha sido da última vez, cinco anos atrás.

Dizem que todo grupo de pessoas assume características do chefe. Tive o prazer de conhecer o embaixador que exercia as funções de cônsul-geral até poucos anos atrás, um gaúcho boa cepa. O atendimento de então se parecia com ele. A acolhida amistosa fazia que a gente se sentisse bem-vindo. Por razões que não cabe aqui explicar, o embaixador foi despachado para o outro lado do planeta. O atual ocupante do cargo será talvez dono de personalidade mais austera, o que explicaria a acolhida menos efusiva.

Para ser atendido, convém marcar hora por internet ou por telefone (agora se deve dizer «agendar», verbo com o qual tenho dificuldade em me acostumar). No consulado, apesar da aparência de modernidade, a marca da negligência nacional continua presente. O burburinho e a agitação dos presentes contrastam com o comportamento silencioso e organizado do país. Como se sabe, no Brasil, as coisas não costumam ser claras e nítidas. Tudo é mais ou menos. No consulado de Genebra, essa impressão já começa pelo prédio. Há outros escritórios e firmas no mesmo edifício. No térreo, há elevador dos dois lados. Não está escrito qual deles serve o consulado. Talvez todos cheguem lá, mas não há indicação.

Vencida a etapa do elevador, você chega ao andar e entra. No imenso salão, logo enxerga, à sua frente, quatro guichês numerados de 1 a 4. Entre você e os guichês, umas três fileiras de quatro cadeiras cada uma, todas de frente para os guichês, como se estivesse lá um palco. Para o lado direito, o salão se espicha, largo e comprido. Serão uns dez metros de largura. Não dá pra ver o fim, de tão longo que é.

Falta cor no chão, nas paredes, no sóbrio mobiliário, no teto rebaixado. Através de uma parede de vidro, percebe-se um jardim interno, dotado de iluminação natural. A entrada não é franqueada ao distinto público. Acostumados à sociedade compartimentada do Brasil, os frequentadores devem achar normal. Não há nenhuma máquina distribuidora de café, bebidas e salgadinhos. Dado que são aparelhos que não acarretam custo ao consulado, a gente fica sem entender por que ninguém pensou nisso.

Vê-se gente por aqui e por ali, grupinhos conversando, um ou outro apoiado em mesinha preenchendo um formulário, dois ou três carrinhos de bebê sem passageiro. Nenhum relógio nas paredes. Várias telas de vídeo, todas com imagens fixas, imóveis e inúteis que teimam em indicar: «guichê n° 1, senha n° 1». Não vi distribuidor de senhas.

Você pára, olha, e fica sem saber o que fazer. Não há um estandezinho de informações para orientar. Nenhuma indicação escrita. Estava eu parado, olhando para um lado e para o outro, sem saber se corria ou se gritava. De repente, uma mocinha mais caridosa, atrás de um guichê vazio, fez sinal pra me aproximar. Dei meu nome. Depois de conferir no computador, ela me disse, apontando para o fundo do corredor comprido: “O senhor pode esperar em frente aos guichês, que será chamado pelo nome”. Agradeci. Os guichês? ‒ pensei. Haverá outros? Caminhei até a outra ponta do corredor, uns 100 passos. A paisagem era idêntica à da entrada: outros quatro guichês enfileirados, numerados de 1 a 4, e as fileiras de cadeiras alinhadas em frente. Sentei-me numa delas e esperei.

Passeando os olhos ao redor, vi cartazes com os dizeres «Você nunca é culpada! Chame 180». Fiquei imaginando o que pudesse significar. Mais tarde, soube pela internet que é o número de telefone de uma central que, no Brasil, cuida de mulheres maltratadas. Fiquei sem entender a razão pela qual esses cartazes enfeitavam paredes aqui, a dez mil quilômetros de distância. Cogitei que seria mais útil criar uma hipotética Central de Amparo ao Imigrante Clandestino. Juro que a central telefônica havia de explodir.

De repente, uma mocinha detrás de um dos guichês me chama pelo nome. Me senti muito importante! Com certa decepção, constatei que atendentes não sorriem mais. Executam ordens. Mostrei os documentos. Me mandou encostar os dedinhos (os dez!), um por vez, no visor de vidro de uma geringonça que tira impressões digitais. O paninho e o vidro de álcool desinfetante, presentes da vez anterior, não estavam mais lá. Vivemos tempos de penúria. Deixei de lado o nojo e me verguei à ordem. Ainda argumentei que já tinha deixado ali minhas impressões digitais cinco anos antes. Por que repetir o processo? Data de nascimento e impressões digitais não costumam mudar. Ela retrucou que o sistema era assim mesmo e que, por favor, seguisse as instruções. Segui.

Daí mostrei o recibo do pagamento de 150 francos (quase 500 reais), feito oito dias antes em agência de correio, em benefício do consulado. Ela olhou e me disse que ia conferir se o dinheiro tinha chegado. Já um tanto incomodado, esclareci que, aqui na Suíça, os Correios são uma instituição. O carimbo aposto no papelzinho garante que o pagamento foi efetuado. Tem fé pública e não permite discussões. Ela não pareceu abalada. Guardou o recibo assim mesmo para conferir. Eu já estava começando a ficar alterado. Afinal, faz décadas que renovo meu passaporte no mesmo consulado. Já deviam ter um arquivo com meus dados, não?

Nisso, a mocinha viu de relance, na minha pasta de documentos, minha cédula de identidade e meu título de eleitor, documentos não exigidos para renovar o passaporte. Pediu os dois. Eu fiz notar que meu RG, tirado 52 anos atrás, mostra uma foto que já não identifica o titular. Quanto ao título, que hoje é um papelzinho sem foto, não identifica ninguém. E tem mais: para fins eleitorais, sou domiciliado exatamente naquele consulado que, portanto, tem todos os meus dados.

Ela foi-se embora dizendo que ia «processar» meu passaporte. Fiquei imaginando como se «processa» um passaporte. A primeira impressão que me veio à mente foi a de uma fábrica de salsicha ‒ com ou sem papelão, tanto faz. Acho que ela quis simplesmente dizer que ia «fazer», «preparar» ou «aprontar» o documento. Me pediu que voltasse à poltroninha e que lá aguardasse. Fui e fiquei quietinho.

Apreciei de novo, de longe, os cartazes insistindo pra eu ligar, sem medo, para o 180. Ao lado, havia outro cartaz mencionando que a lei número tal confere prioridade no atendimento a pessoas com mais de 60 anos, grávidas, portando criança de colo e com sobrepeso. Fiquei matutando como seria possível alguém ter mais de 60 anos, estar grávida, obesa e ainda aparecer carregando criança no colo. Ah, essas negligências na formulação de leis ainda hão de nos atormentar por muito tempo.

O tempo de espera começou a parecer longo. Divaguei. Empaquei nessa lei que privilegia uns com base na aparência. Considerei que velhice não é doença. Gravidez tampouco. Para carregar criança, existem hoje em dia carrinhos muito práticos e levinhos. Constatei que a lei se limitava a casos visíveis, omitindo os demais. Como ficam pessoas com câncer, insuficiência cardíaca, reumatismo, dor na espinha, calo no pé? Ou bem se ajuda a todos os que precisam ou não se ajuda a ninguém. A tal lei me pareceu capenga.

Reparei ainda numa coleção de uma dezena de gravuras penduradas na parede do fundo do imenso salão, reprodução de obras do século 17. Cada gravura de uns 30cm de altura por um metro de largura traz a silhueta, traçada a bico de pena, de cidades europeias. Berlim, Berna, Bordeaux, Antuérpia, Bruxelas estão ali. Tudo coisa fina. Fiquei um tanto nostálgico com a ausência das araras, dos papagaios, do bondinho do Pão de Açúcar, da calçada de Copacabana que costumavam aparecer nos cartazes de antigamente. Os velhos posters da Varig desapareceram com a própria.

Uma hora, a mocinha reaparece e me chama, sempre exibindo fisionomia de esfinge sem sorriso. Vou até lá e, antes de mais nada, boto reparo nas mãos dela. «Ufa!» ‒ pensei ‒ «Ela vem com dois passaportes, sinal de que o novo saiu.» De fato, devem ter constatado que meu pagamento chegou. Com os passaportes, me devolveu o RG e o título de eleitor, mas não o recibo de pagamento. Perguntei onde estava. «O recibo é nosso» ‒ me diz ela. Aí, me empertiguei. «Não, senhora, o recibo é de quem pagou. Vocês ficam com o dinheiro e eu, com o recibo. Sem meu recibo, não saio daqui». Sem saber como reagir, ela me pediu um instantinho e desapareceu.

O instantinho foi longo. Deu pra ouvir um vozerio lá atrás. Acho que não é todos os dias que aparece um conterrâneo tão chato. Mas, sacumé, como eu falo grosso e uso argumentação lógica, costumo obter o que peço. Depois de um tempo, volta a moça com um recibo emitido pelo consulado, com papel timbrado com as armas da República, tudo em cores, numa folha de papel A5, chique que só vendo. Senti-me satisfeito. Desejei à mocinha boa continuação, virei as costas e fui-me embora.

Com meu limitado senso de orientação, foi difícil encontrar a saída. Cheguei a enxergar até a porta do banheiro, mas nada de saída. Não ocorreu ao pessoal do consulado instalar um cavalete com uma seta indicando por onde se deve passar. Acabei encontrando e saí. Sem lenço, mas… com documento.

Deu uma pontinha de saudade do tempo em que a salinha do consulado não tinha mais de dez ou doze metros quadrados. Era um em que, por falta de conterrâneos nesta parte do mundo, o atendente ‒ havia um só ‒ era um simpático senhor português. Era um tempo em que a gente dava uma passadinha no consulado só pelo prazer de manusear um exemplar amarrotado d’O Cruzeiro ou da Manchete ou, com sorte, um exemplar do Estadão ou d’O Globo com notícias do mês anterior. Eram o cordão umbilical de um tempo sem internet. Que fazer? Ninguém segura o progresso.

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