Os perigos da euforia

José Horta Manzano

Na madrugada passada, em mero controle rotineiro levado a cabo na estação ferroviária de Sesto San Giovanni, periferia de Milão, dois agentes da polícia local patrulhavam a plataforma de desembarque. Em escolha aleatória, sem desconfiar da identidade da pessoa a quem se dirigiam, pediram a um jovem recém-desembarcado que mostrasse seus documentos. Em resposta, o interpelado sacou um revólver calibre 22 e atirou à queima-roupa num dos dois policiais. Ferido no ombro, o agente veio a terra. O patrulheiro que o acompanhava não esperou sua vez. Sacou imediatamente e, em compreensível e legítimo gesto de defesa, atirou no desconhecido. Não errou o golpe. Atingido em cheio, o desconhecido desmoronou. Morto.

italia-sesto-san-giovanniNeutralizado o agressor, foram feitas as verificações habituais. Com espanto, constatou-se que se tratava do assassino de massa, aquele que havia lançado um caminhão, como um bólido, sobre uma multidão em Berlim, dias antes. As impressões digitais e a comparação fotográfica com a sinalização difundida pela polícia alemã não deixam dúvida sobre a identidade do morto. Bilhetes de trem encontrados nos bolsos do tunisiano darão indicações sobre sua rota de fuga. Talvez levem a eventuais cúmplices. Até aí, não há nada a criticar. O fugitivo não foi «executado», como às vezes acontece. A prova da troca de tiros é justamente o policial ferido, atualmente hospitalizado e que, felizmente, não corre risco de vida. O mundo está ficando cada vez menor. A informação circula cada vez mais rápido. Os tempos andam duros para contraventores, criminosos e fugitivos em geral. (Que o digam os que a Lava a Jato tem apanhado de calça curta.)

O terrorista enfrentou a polícia italiana e foi por ela posto fora de combate. Os agentes que, por ofício, patrulhavam a estação cumpriam horário. A agressão foi cometida contra o Estado italiano. O policial, naquele momento, representava a nação. Acontece que os italianos têm o dom de dramatizar. O ministro dos Negócios Internos deu, esta manhã logo cedo, coletiva de imprensa. Relatou o acontecido e fez questão de dar o nome completo do policial de cuja arma saiu a bala que matou o terrorista. A meu ver, não agiu ajuizadamente. Por duas razões, deveria ter omitido o nome do agente.

policia-4Primeiro, por razões éticas e de privacidade. Talvez o jovem não aprecie que o planeta fique sabendo que foi ele a acionar o gatilho que tirou a vida de um semelhante. Atirou contra um criminoso, sem dúvida, assim mesmo há de ser desconfortável ser apontado na rua como responsável direto pela morte de alguém. Agora não tem mais jeito: com nome, idade e currículo divulgados, será impossível escapar.

Há uma segunda razão, talvez mais grave que a anterior. Daqui a alguns meses, a poeira terá baixado para a maioria de nós. No entanto, mandachuvas do Estado Islâmico, fanáticos, radicais & outros destrambelhados podem não esquecer nunca. O policial ‒ que agora tem identidade conhecida ‒ periga passar o resto da existência na angústia de ser vítima de vingança.

O ministro italiano deveria ter-se lembrado do caso do escritor britânico Salman Rushdie, aquele que publicou, em 1988, um livro considerado ofensivo aos valores islâmicos. O homem, que nunca mais pôde levar vida normal como qualquer cidadão, vive sob proteção da polícia secreta britânica faz quase trinta anos.

6 pensamentos sobre “Os perigos da euforia

  1. Grande José, longe de querer ensinar o padre a rezar missa, “risco de vida” é muito bom que o policial sortudo corra, afinal, na sorte/azar do seu (bom) trabalho e probabilidades, conseguiu encontrar (mesmo que sem querer) um dos caras mais procurados do mundo……………..seria sacanagem ele correr “risco de morte” depois de seu feito…………e concordo com você, se ele quiser os holofotes do seu feito ele que apareça nos (toscos) programas italianos de televisão, esta decisão não cabe ao ministro, que deveria ter sido mais discreto……….e vejo um certo exagero na sua opinião de que o policial italiano representava sua nação naquele momento, e nem a reação do terrorista se configura num ataque a nação………era em criminoso em fuga que foi confrontado pela polícia……….reagiu contra um perigo eminente a si (ser preso), e não em nome de uma ideologia (nesse caso, o estado islâmico)………não atacou o sistema, atacou um agente dele que naquele momento representava um perigo para ele………………enfim, achei exagerado…………..boas festas!

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    • Caro Eder,

      Toda pessoa imbuída de missão oficial representa quem lhe confiou a missão. O embaixador em missão oficial, ninguém há de discordar, representa seu país. O policial uniformizado tem poderes que o cidadão comum não tem. Ele pode portar arma e fazer uso dela, em determinadas circunstâncias, contra um cidadão. Ele é o braço armado do poder público. E o poder público, ao fim e ao cabo, somos nós, os cidadãos. Portanto, policial em serviço representa os cidadãos do país ‒ por analogia, representa o próprio país. Sim, senhor.

      Quanto ao bizarro “risco de morte”, modismo extravagante em voga há alguns anos, sugiro a você, que gosta de ler, dar uma vista d’olhos num excelente post sobre o assunto. O autor é o professor Cláudio Moreno, um bambambã em assuntos de língua. O caminho é por aqui:

      http://sualingua.com.br/2009/04/27/risco-de-vida/

      A você também, meus desejos de alegres festas e ano-novo feliz.

      Forte abraço.

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  2. Perfeito José Horta Manzano. O policial naquele momento não agiu pelos próprios interesses, crenças, ideologias, mas, cumpriu sua função como policial defendendo o local onde atuava e a revelação surpreendente da identidade do criminoso nos diz que o policial acabou por defender a nação, quiçá o mundo, de um ser que a qualquer momento poderia ter outro rompante de impor a todos o que não tem servido sequer pra si… Que falha absurda revelarem o nome do policial! Conhece alguma sociedade, alguma civilização passada ou atual que funcione sem leis, limites? Eu não. Se com polícia e leis está esse caos, imaginemos sem, não é mesmo?

    Aproveito pra desejar a você e sua família um Natal repleto de aconchego e um ano novinho para desfolhar, com sensatez, reflexão e bom humor, com sempre tem.
    Um grande abraço!

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    • Muito obrigado, Michèle. A você e aos seus, desejo também um Natal alegre e um ano-novo melhor do que os que temos tido. Que o «país do futuro» passe, finalmente, a ser o país do presente. E que esse presente seja bom para você e para todos nós.

      Forte abraço.

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  3. (Comentário co algum atraso, eu sei…rs) Antes de ler a explicação do Professor Moreno, quero dizer que gostei de ver a expressão “risco de vida” e não “risco de morte”. Sempre fui contrário à segunda forma (que, como quase todo modismo, é esdrúxula), e justifico assim: se corremos o risco, é de perder algo (e não de ganhar!). Portando, em “risco de vida”, corre-se o risco de PERDER A VIDA. Ninguém em sã consciência diz que você corre o risco de casar-se, que você corre o risco de acertar na loteria, que você corre o risco de ganhar um presente… Agora, sim, vou ler o texto do Professor Moreno. FELIZ NATAL A TODOS!

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